Cosmogonias e a origem das religiões

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SEMELHANÇAS E DESSEMELHANÇAS ENTRE AS PRINCIPAIS COSMOGONIAS E SUA RELAÇÃO COM A ORIGEM DAS RELIGIÕES

Cosmogonia é um termo composto de duas palavras gregas cosmos, que significa mundo, e gonia, que traz a ideia de geração, nascimento.

A Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, no verbete Cosmogonia traz a seguinte definição: “ Teoria sobre a origem do universo geralmente fundada em lendas ou em mitos e ligada a uma metafísica.”[1] Portanto, cosmogonia são narrativas mitológicas ou não que procuram explicar o surgimento do universo.[2]

Mito e cosmogonia

O pensamento mítico foi a primeira forma de interpretar a realidade. Mitologia vem de mytheyo que dentre outras coisas tem o sentido de “contar, narrar, falar alguma coisa para outros”. É uma narrativa não lógica com fim de explicar a origem das coisas tais como o universo, o homem, o fogo, o mal, etc.

O mito apela ao sobrenatural e constitui-se de elementos por vezes incoerente, fantasioso e eminentemente explicativo.

Na Grécia antiga os narradores dos mitos eram chamados de rapsodos ou poetas. Eram pessoas pretensamente escolhidas pelos deuses para trazer uma revelação narrada em forma poética na praça. Essa narrativa se esconde na coletividade da comunidade (não tem autor). O poeta era digno de confiança, pois possuía legitimidade religiosa.

O mito narra a origem das coisas por meio das cosmogonias (origem do universo) e teogonias (origem dos deuses). Geralmente a narrativa possuía uma finalidade explicativa mais abrangente. Por exemplo, para explicar o amor, nasceu o mito de Eros (cupido). A origem do fogo e dos males é explicada pelo mito de “Prometeu” e da “Caixa de Pandora”.

Religiões e Cosmogonias

Os mitos cosmogônicos estão presentes nas antigas religiões e também no começo do pensar filosófico. Por exemplo, as narrações de Homero, aponta Zeus como aquele que coloca ordem no mundo. Na filosofia, Tales de Mileto propôs uma explicação mais racional para a origem do universo e da vida. Para ele a água seria o elemento básico (arké) que deu origem a tudo, mais tarde eles adicionaram o logos, princípio organizador.

As primeiras cosmogonias estão preocupadas com a phisis, a origem do universo e da natureza. É assim que as cosmogonias egípcias e gregas apresentam os conceitos similares de um caos primordial e o surgimento dos deuses no meio deste caos e em oposição a ele. Estas cosmogonias lidam especificamente com a forma como os deuses criaram o mundo.

Os relatos cosmogônicos pagãos, todavia, refletem uma teologia rudimentar presente nas diversas religiões espalhadas pelo mundo.

Entretanto, é difícil identificar quem deu origem a quem, a cosmogonia à religião ou a religião à cosmogonia.

Cosmogonias antigas

Praticamente todos os povos antigos possuem um relato mítico sobre a criação do mundo. As cosmogonias mais conhecidas são aquelas pertencentes à região da mesopotâmia.

No livro “O Cérebro de Broca”, o cientista Carl Sagan, descreve a cosmogonia do povo Dogon, do interior da África Ocidental da seguinte maneira:

“A cosmogonia Dogon descreve como o Criador examinou um cesto entrançado, de boca redonda e base quadrada. Esses cestos ainda se usam hoje no Mali. O Criador voltou o cesto ao contrário e usou-o como modelo para a criação do mundo: a base quadrada representa o céu e a boca redonda o Sol.”[3]

Cosmogonia Suméria

O texto mais antigo a retratar uma cosmogonia é dos povos orientais chamados de Sumérios. Para os sumérios O mito do paraíso de Enki e Ninhursag apresenta uma série de deusas procriando à semelhança humana; utilizando-se do sêmen do deus Enki a vida vegetal é gerada em variadas formas.

Cosmogonia Egípcia

As crenças e lendas egípcias sobre a criação do mundo aparecem em diversos relatos textuais. Os três mitos mais influentes egípcios aparecem nas cidades de Heliópolis, Memphis, e Hermopolis.

Todos eles apresentam os conceitos similares de um oceano primordial, uma colina primordial, e a deificação de natureza. Estas três cosmogonias lidam especificamente com a forma como os deuses criaram o mundo. Em Heliópolis, nove deuses constituem as funções do Grande Ennead (os nove deuses). Atum funciona como o deus criador, de quem os outros oito deuses são originados. Atum gerou dois filhos, Shu (ar) e Tefnut (umidade). Posteriormente por meio de relações sexuais eles produziram Geb (terra) e Nut (céu).

Cosmogonia Babilônica

A cosmogonia babilônica é uma das mais conhecidas do mundo. A figura do Caos novamente é vista em oposição aos deuses. Uma grande batalha entre essas duas forças teria dado origem ao universo, em um conflito cósmico entre a Ordem e o Caos. A deusa Tiamate, que representava o oceano primitivo, batalha contra Marduque e é derrotada. Os céus e a terra são criados a partir da carcaça dividida de Tiamate. Com o sangue daqueles que conspiravam com ela, a humanidade é criada.

Cosmogonia hebraica

Para judeus e cristãos, as histórias da criação contidas no livro do Gênesis fazem parte de sua cosmogonia. O modelo hebraico fundamenta-se na existência de um Deus criador do Universo que criou a partir do nada os céus, a terra e todos os seres vivos em sete dias. O Deus hebraico não sai de um caos primordial, é sobrenatural e transcendente à sua criação, isto é, está além da natureza do universo material, não faz parte do mundo natural. Não foi criado.

Cosmogonias Grega e Africana

Em ambas, Deus é a própria Natureza, Ele é natural, e as forças da Natureza traduzem seus desejos. Não há uma origem do Universo, não aconteceu um momento de criação: o Universo sempre existiu, existe e existirá. Não tem início nem fim. Deus opera as próprias transformações da Natureza.

Semelhanças e diferenças nas cosmogonias

Podemos encontrar várias semelhanças entre as diversas cosmogonias do oriente antigo. Geralmente elas trabalham com alguns elementos que podem ser encontrados em quase todas as narrativas, inclusive a hebraica.

Água – o elemento primordial para a vida. Em uma região desértica é de se esperar que a figura deste elemento natural adquira aspectos mitológicos. Na mitologia egípcia, Num é o elemento aquático e inerte de que surge a terra. Na epopéia babilônica da criação, o monstro Tiamat o dragão do caos (= água original) foi superado por Marduc que fez do seu corpo o céu e a terra. Na cultura grega Tales, filósofo da natureza ensinava que tudo que é vivo saiu da água. Na cosmogonia hebraica a terra sai do meio da água.

Trevas – em uma época pré-industrial, onde a noite não havia sido vencida pela luminosidade da tecnologia e da ciência, as trevas eram símbolo do terror. Era o inimigo do homem primitivo. Tanto no Egito antigo como na mesopotâmia, incluindo o povo hebreu, as trevas representavam o caótico, o amorfo do estado anterior à criação. Na escuridão encontram-se as forças inimigas dos deuses e dos homens. Treva está relacionada com a noite e a luz com o dia.

Há outros elementos tais como, a luz, a árvore, uma serpente, um paraíso, um deus criador, um dilúvio, a quebra de amizade entre os deuses e os homens, o número sete, etc..

É inegável que os textos mitológicos do oriente próximo sugerem que os israelitas compartilhavam de alguma forma uma concepção semelhante à destes povos.

Partindo desta ideia alguns têm sugerido que a cosmologia hebraica, que veio posterior à destes povos é uma adaptação das antigas cosmologias do Egito, Mesopotâmia e Ugarith e dependente delas. Entretanto, o teólogo Bob Deffinbaug assevera: “A explicação mais aceitável é que as semelhanças são explicadas pelo fato de que todos os relatos similares da criação tentam explicar os mesmos fenômenos”[4]

É bem possível que o conhecimento mais antigo do relato da criação houvesse sido distorcido a tal ponto que perdesse sua originalidade e veracidade.

Quanto a isso Merril Unger afirma:

“Muito cedo os povos se desviaram daquelas primeiras tradições da raça humana, e em climas e temperaturas variadas, têm-nas modificado de acordo com sua religião e modo de pensar. As modificações com o tempo resultaram na corrupção da tradição pura e original. O relato de Gênesis não é o único inalterado, mas em qualquer lugar sustenta a inerrante impressão da inspiração divina quando comparado às extravagâncias e corrupções de outros relatos. A narrativa bíblica, podemos concluir, representa a forma original que deve ter sido assumida por essas tradições.”[5]

A despeito de algumas similaridades encontradas entre as narrativas pagãs, o relato do livro de Gênesis possui material exclusivo e original – revelado ou compilado da tradição oral.  A cosmogonia hebreia apresenta logo de frente um monoteísmo inigualável em todo o Oriente. A narrativa dos mitos cosmogónicos dos povos do Antigo Oriente apresentava-se em forma de poesia, o que contrasta com o gênero literário do livro do Gênesis que possui um caráter eminentemente histórico e teológico.

Outra diferença entre o relato de Gênesis e a narrativa das outras cosmogonias está em alguns verbos. A Bíblia descreve Deus usando o verbo criar, “bara” em hebraico e que significa “criar do nada”, sem matéria preexistente. As narrativas míticas dos povos vizinhos de Israel, por outro lado, sempre mostra que a matéria é preexistente e infinita, portanto, anterior até mesmo aos deuses.

Conclusão

Há uma nova tendência entre estudiosos do tema de que mito, não necessariamente quer dizer mentira ou falsidade, mas uma forma diferente do homem antigo descrever a realidade a partir de fatos verdadeiros. Esta é a opinião que toma o mitólogo Mircea Eliade em seu livro “Mito e Realidade”, (São Paulo, Perspectiva, 2004).

Todavia, os relatos cosmogônicos presentes nos textos egípcios, sumerianos, babilônicos, indianos, africanos e outros atestam o contrário. Apesar de algumas semelhanças superficiais, os relatos de Gênesis contrastam fortemente com os relatos de outros povos. Tudo leva a crer que um relato original foi deturpado quando espalhado pelas muitas culturas e povos, sobrando apenas um “esqueleto” que poderia lembrar o que a cosmogonia hebreia relata em sua plenitude.

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[1] (1) Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa,Rio de janeiro: editorial Enciclopédia, [s.d. P.]

[2] A ciência moderna também trabalha com cosmogonia, pois muitos postulados científicos necessitam de fé para sustentar suas teorias da origem.

[3] SAGAN, Carl. O cérebro de broca. Lisboa, 3ª ed. Gradiva Publicações, s/d, p.68.

[4] Watke, Caos and Creation, pp.12; IN: DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). Disponível em: https://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23. Acesso em 06out16.

[5] Merrill F. Unger, Archaeology and the Old Testament, p. 37, citado por DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). Disponível em: http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23. Acesso em: 06out16.

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