Constituição do homem

Sistematicamente, pode-se definir duas possibilidades de interpretação para os aspectos da constituição humana: (1) Tricotomia, e (2) Dicotomia.

A Tricotomia

A interpretação trina do homem é fundamentada sobre algumas passagens bíblicas que sugerem que o homem é formado por corpo alma e espírito, apenas. Essa visão tem suas bases voltadas para a filosofia grega, que está alheia dos relatos bíblicos. Essa idéia foi sugerida pelo aprofundamento dos estudos de Aristóteles sobre as informações deixadas por Platão. Esse raciocínio foi encontrado também em alguns pais da Igreja, como Tertuliano, e nos os escolásticos (teólogos católicos por volta do século XII e XIII), como Tomás de Aquino.

A idéia básica dessa forma de ver o homem, é a supremacia do Espírito em relação ao corpo e alma, embora a alma seja superior ao corpo. Assim, o Espírito diz respeito aos sentimentos espirituais; a Alma ao que é de natureza intelectual, emocional ou volitivo; Corpo, refere-se unicamente ao sentidos naturais, como, visão, tato, olfato, audição e paladar.

A fundamentação desse pensamento nasce a partir dos textos que seguem:

“O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts.5.23)

“Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração” (Hb.4.12)

Mas, nesta visão é possível ressaltar alguns problemas, pois como explicar os “pensamentos” e os “propósitos do coração“? Onde eles se encaixam? E, segundo outros textos que afirmam a existência da consciência do homem? E textos, como Mc.12.30, que não falam nem sobre “espírito” nem “corpo”?

“A tricotomia, do modo em que é comumente definida, põe em perigo a unidade e imaterialidade da nossa mais elevada natureza”

A concepção da tricotomia, acaba por recortar o homem em três partes distintas, onde alma e espírito são distintos entre si e do corpo. É como se fossem três aspectos autônomos em um mesmo homem. Mas tal postura não pode ser sustentada à luz das escrituras, pelas seguintes razões:

Os versículos demonstrados para a visão tricotomista podem ter sua explicação mais razoável da perspectiva bíblica. Em 1Ts.5.23, Paulo não tem por propósito enumerar as facetas da constituição humana, nem mesmo distinguí-las, mas demonstrar um apanhado da sua natureza nas principais relações. Esse fato pode ser demonstrado em um texto alternativo, Mc.12.30. neste texto notamos que existem quatro aspectos separados da constituição humana, coração, alma, entendimento e forças, mas ninguém se arrisca a afirmar uma quadricotomia baseado neste texto. Ou seja, em ambos texto nota-se que o autor não tem interesse de segmentar o homem, mas demonstrar que cada aspecto de sua constituição imaterial deve estar presente em seu relacionamento com Deus.

Com referência à Hb 4.12, podemos notar que o autor de Hebreus fala que a Palavra de Deus é suficientemente poderosa para dividir alma e espírito. O que se nota neste texto é a ênfase da profundidade da ação da Bíblia na vida de um homem. Outro detalhe importante é que a palavra de Deus divide, e só pode-se dividir o que está junto. Ou seja, as evidências a favor da tricotomia são pouco conclusivas. Assim, é mister compreender o que ser a visão dicotomista do homem.

B) Dicotomia

“A exposição geral da natureza do homem na Escritura é claramente dicotômica[1]

A interpretação dual do homem é baseada não somente no relato da criação, mas também na observação do texto bíblico que sugere que o homem é formado de um aspecto material (corpo) e outro imaterial (alma, espírito, coração, pensamentos, consciência). A própria palavra “Dicotomia” sugere isso. A origem da palavra é grega, e formada pela junção do substantivo “di,ca”, que significa dois, e “te,mnw”, que significa cortar, traduzido satisfatoriamente por “formado de duas partes“. Assim é importante demonstrar alguns princípios bíblicos que asseguram essa posição:

O relato da criação

A natureza dupla do ser humano – que é material e imaterial – é determinada pelo modo como o homem foi criado[2]”, o corpo do pó da terra e a alma é soprada por Deus.

“E formou o Senhor o homem do pó da terra e soprou nas suas narinas o fôlego da vida, e o homem foi feito alma vivente” (Gn.2.7)

Deve atentar para a ordem dos fatos na narrativa mosaica, pois não afirma que o homem foi criado alma vivente e depois Deus soprou o espírito, mas, o homem passa a ser alma vivente apenas após o sopro de Deus. Sobre isso Strong afirma que “a vida de Deus apossou-se do barro e, como resultado, o homem teve uma alma[3]“.

Outro detalhe importante que deve ser notado são as considerações de Jó com respeito a essa percepção:

Tão certo como vive Deus, que me tirou o direito, e o Todo-Poderoso, que amargurou a minha alma, enquanto em mim estiver a minha vida, e o sopro de Deus nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça, nem a minha língua pronunciará engano. (27.2-4)

Nota-se que para Jó era certo que ele era uma criatura de Deus e que sua vida natural estava intimamente ligada ao “sopro de Deus” em suas narinas, como ele mesmo assegura. Pensamento semelhante é esboça do Eliú, que pouco depois:

Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sábio.(32.8)

O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida. (33.4)

Eis que diante de Deus sou como tu és; também eu sou formado do barro. (33.6)

O que podemos observar é que para a cosmovisão hebraica a criação de Deus era um fato real, tal como narrado em Gênesis. Outro fato mais interessante ainda, é que, segundo estudiosos, Jó é um homem que viveu muito antes que Moisés pudesse ter escrito o livro de Gênesis. Ou seja, a tradição judaica já sustentava o fato da criação, mas de uma perspectiva ainda dicotômica desta. E a mesma percepção com respeito a constituição do homem permanece. Nota-se que em nenhum momento o relato de Jó ou Eliú parece esboçar a constituição humana além do que é material ou imaterial (Para outros exemplos, cf. Gn.35.18Sl.31.5).

Uso intercambiável dos termos “alma” e “espírito”

É notório nas escrituras que os termos “alma” e “espírito” podem ser utilizados de maneira intercambiável. Esse fato pode ser evidenciado. Note:

“De manhã, achando-se ele de espírito perturbado…” (Gn.41.8)

Em sua narrativa sobre as origens de seu povo, Moisés ressalta a história que envolve José no período que estava no Egito. Neste tempo, Faraó teve um sonho um tanto estranho, e isto o estavam incomodando. Nessa altura na narrativa mosaica afirma que, pela manhã após o sonho, Faraó estava confuso, ou como Moisés afirma, de espírito perturbado. Entretanto, em um dos Salmos dos filhos de Coré podemos encontrar um sentimento distinto, mas aplicado à alma do indivíduo. Observe:

Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em mim? (Sl.42.5)

Sinto abatida dentro em mim a minha alma… (v.6)

O que se pode ressaltar deste texto, senão o relato da tristeza do salmista exilado no extremo norte da Palestina, que anseia por voltar ao templo em Jerusalém. Mas o que os dois textos tem em comum? O que parece óbvio, a expressão de um sentimento, embora um atribua à alma e outro ao espírito. Seria isto uma prova de que alguns sentimentos reportam-se a alma e outros ao espírito? Não, significa que os termos, alma e espírito, são utilizados de maneira intercambiável para expressar o mesmo fato. Vamos observar outros versículos:

Agora está angustiada a minha alma, e que direi eu? (Jo.12.27)

Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou… (Jo.13.21)

A palavra grega referente ao sentimento expresso pelo vocábulo “angustia” é “tarássö”, que denota basicamente inquietaçãoangústia. Este vocábulo grego é encontrado nas duas sentenças, mas ora atribuído à alma, ora ao espírito. Ou seja, ou Jesus tem dificuldade de reconhecer a que aspecto da sua constituição reportam-se as emoções, ou os termos alma e espírito são utilizados de maneira intercambiável. (Para mais exemplos observe os seguintes textos: Mt.20.28cf. 27.50; Hb.12.23cf. Ap.6.9).


[1]BERKHOF, Louis. pp.178.

[2] CHAFER, Lewis Sperry. Teologia Sistemática. Hagnos:São Paulo, 2003. Vol II. pp.553.

[3] STRONG, Augustus Hopkins. Teologia Sistemática. Hagnos:São Paulo, 2003. Vol. II, pp.45.

Extraído do site marceloberti.wordpress.com/ em 28/08/2017

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