Comparação Teológica entre Sproul, Calvino e os Hipercalvinistas sobre a Dupla Predestinação

A doutrina da predestinação é uma das mais profundas e desafiadoras da teologia cristã reformada. Dentro desse contexto, teólogos como João Calvino e R. C. Sproul ofereceram interpretações distintas, que por vezes geraram debates e divergências, inclusive com o hipercalvinismo. Neste artigo, exploraremos as nuances das posições de Calvino e Sproul, comparando-as com o hipercalvinismo, e destacaremos as possíveis incoerências entre suas afirmações, especialmente no que se refere à questão da dupla predestinação e ao papel de Deus na condenação dos réprobos.

  1. A Visão de R. C. Sproul sobre a Predestinação Positiva-Negativa

C. Sproul, em Eleitos de Deus, aborda a doutrina da predestinação, distinguindo entre o calvinismo ortodoxo e o que ele chama de hipercalvinismo. Sproul afirma:

> “A destinação simultânea é baseada no conceito da simetria. Procura um equilíbrio completo entre eleição e reprovação. A ideia-chave é esta: assim como Deus intervém nas vidas dos eleitos para criar fé em seus corações, também assim igualmente intervém nas vidas dos reprovados para criar ou operar incredulidade em seus corações. A ideia de Deus ativamente operando incredulidade nos corações dos reprovados é extraída das declarações bíblicas sobre Deus endurecendo os corações das pessoas” (p. 104).

Aqui, Sproul apresenta a visão hipercalvinista da dupla predestinação, a qual ele rejeita. Ele critica essa interpretação, chamando-a de “subcalvinismo” ou “anticalvinismo”, pois, segundo ele, a visão reformada ortodoxa não ensina que Deus ativamente cria incredulidade nos réprobos. Ele faz a seguinte distinção:

> “A destinação simultânea não é a visão reformada ou calvinista da predestinação. […] A visão reformada ensina que Deus positivamente e ativamente intervém nas vidas dos eleitos para garantir sua salvação. O restante da humanidade Deus deixa por si mesmos. Ele não cria incredulidade em seus corações. Essa incredulidade já está lá. Ele não os coage a pecar. Eles pecam por suas próprias escolhas. No calvinismo, o decreto de eleição é positivo. O decreto de reprovação é negativo” (p. 104).

Essa distinção entre a predestinação positiva (em que Deus ativa e diretamente intervém para garantir a salvação dos eleitos) e a predestinação negativa (em que Deus simplesmente deixa os réprobos em sua incredulidade) é o cerne da explicação de Sproul sobre o calvinismo ortodoxo.

  1. A Visão de João Calvino: Predestinação e a Soberania Absoluta de Deus

Em contraste, João Calvino tem uma visão mais direta e abrangente da soberania de Deus sobre todas as coisas, incluindo o destino dos réprobos. Em suas Institutas da Religião Cristã, Calvino afirma:

> “Aqui recorre-se à distinção de vontade e permissão, segundo a qual querem manter que os ímpios perecem pela mera permissão divina, não porque Deus assim o queira. Mas, por que diremos que o permite, senão porque assim o quer? Pois não é provável que o homem tenha buscado sua perdição pela mera permissão de Deus, e não por sua ordenação” (Vol III, p. 417).

Calvino rejeita a distinção entre “vontade” e “permissão”, insistindo que tudo o que acontece, inclusive a perdição dos ímpios, está de acordo com a vontade soberana de Deus. Ele continua:

> “Portanto, quem quiser guardar-se desta infidelidade, tenha sempre em lembrança que não há nas criaturas nem poder, nem ação, nem movimento aleatórios; ao contrário, são de tal modo governados pelo conselho secreto de Deus, que nada acontece senão o que ele, consciente e deliberadamente, o tenha decretado” (Vol I, p. 202).

Calvino, assim, estabelece que não há nada fora do controle ou da ordenação divina, incluindo a incredulidade dos réprobos. Ele argumenta que Deus decreta tudo o que acontece, desde a eternidade, e governa tanto os destinos dos eleitos quanto dos réprobos:

> “Afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada” (Vol I, p. 207).

  1. A Incoerência entre Sproul e Calvino

Aqui surge uma clara incoerência entre as posições de Sproul e Calvino. Enquanto Sproul distingue entre o decreto positivo para os eleitos e o decreto negativo para os réprobos, alegando que Deus simplesmente “deixa de lado” os réprobos, Calvino é enfático ao afirmar que tudo, incluindo a incredulidade e a condenação dos réprobos, está sob o decreto ativo de Deus.

Calvino chega a afirmar que Deus, em seu conselho eterno, decreta a criação de homens destinados à condenação, para que sua justiça seja glorificada:

> “Quando, porém, não por outra razão haja de antemão visto as coisas que hão de acorrer, senão porque assim decretou que acontecessem, em vão se move litígio acerca da presciência, uma vez ser evidente que todas as coisas sucedem antes por sua ordenação e arbítrio” (Vol III, p. 415-416).

Sproul, ao tentar separar o decreto positivo (salvação) do decreto negativo (condenação), parece ignorar a afirmação de Calvino de que Deus ordena todas as coisas, sem exceção. Isso coloca as duas visões em conflito, pois, para Calvino, até a incredulidade é parte do plano divino.

  1. O Hipercalvinismo e a Predestinação Positiva-Positiva

O hipercalvinismo, ao qual Sproul se opõe, ensina que Deus ativa e positivamente intervém tanto na salvação dos eleitos quanto na condenação dos réprobos. Sproul considera essa visão como uma “violência radical à integridade do caráter de Deus”:

> “O terrível erro do hipercalvinismo é que envolve Deus na coação do pecado. Isto faz violência radical à integridade do caráter de Deus” (p. 105).

No entanto, Calvino, em muitos aspectos, parece se aproximar mais da visão hipercalvinista, já que ele não faz distinção entre a vontade de Deus em relação à salvação e à condenação. Para ele, ambos os destinos são decretados soberanamente por Deus para Seus próprios propósitos.

Conclusão

As abordagens de Calvino e Sproul à doutrina da dupla predestinação demonstram uma tensão teológica significativa dentro do calvinismo. Enquanto Calvino parece abraçar uma soberania divina absoluta que decreta tanto a salvação quanto a condenação, Sproul tenta suavizar essa doutrina, alegando que Deus não intervém ativamente na incredulidade dos réprobos. O hipercalvinismo, por outro lado, leva essa lógica ao extremo, afirmando que Deus intervém de maneira simétrica em ambos os casos.

A inconsistência entre as visões de Sproul e Calvino revela uma dificuldade intrínseca na teologia reformada em lidar com o papel de Deus na condenação e no pecado. As Escrituras apresentam um Deus que governa todas as coisas, mas também um Deus que deseja que todos se arrependam e sejam salvos, o que coloca um desafio para as doutrinas da predestinação.

Questionário

  1. Qual a diferença entre a predestinação positiva-negativa de Sproul e a visão de dupla predestinação de Calvino?

 

  1. Como Calvino rejeita a distinção entre “vontade” e “permissão” em relação à condenação dos réprobos?

 

  1. De acordo com Sproul, como Deus lida com os réprobos em comparação com os eleitos?

 

  1. O que Calvino quer dizer quando afirma que “nada acontece senão o que [Deus] tenha decretado”?

 

  1. Como Sproul distingue o calvinismo ortodoxo do hipercalvinismo em relação à dupla predestinação?

 

  1. De que forma a visão de Calvino sobre a predestinação se aproxima da visão hipercalvinista?

 

  1. Qual é o “terrível erro” do hipercalvinismo, segundo Sproul?

 

  1. Como a providência de Deus sobre os “desígnios e intenções dos homens” pode ser reconciliada com a responsabilidade humana, segundo Calvino?

 

  1. Em sua opinião, a tentativa de Sproul de distinguir entre decretos positivos e negativos resolve o problema teológico da predestinação?

 

  1. Como você interpreta a soberania divina à luz das Escrituras que falam sobre a vontade de Deus de que todos se arrependam?

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Por Walson Sales

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