Por Justin Rowlatt
(traduzido e adaptado por Aureo Vieira)
Esta reportagem foi originalmente escrita por Justin Rowlatt em abril de 2019 para a BBC News. Ao fazer a tradução e adaptação – tentando contextualizá-la – foi necessário explicar sobre os fatos e suas datas para que o leitor fique o mais próximo da realidade daquilo que já vinha acontecendo no Afeganistão.
Como resumo, os principais pontos abordados na reportagem apontam para o seguinte:
– Afeganistão como um Estado Narco (produção de heroína a partir do ópio da papoula);
– As destruições que os americanos e as forças de coalisão achavam estar sendo realizadas sobre áreas com cultivo de papoula ou laboratórios clandestinos, na verdade, eram sobre locais sem nenhuma atividade criminosa;
– Já desde algum tempo se sabia que a população em geral dependia da papoula para sobreviver e que isso torna tudo muito vulnerável e sensível;
– Os narcotraficantes com quase absoluta certeza também financiavam o Talibã, embora o movimento terrorista religioso busque se descolar dessa ideia. Porém os lucros da heroína são usados para financiar o Talibã, bem como outros grupos terroristas como o Estado Islâmico e a Al Qaeda. E a heroína também impulsiona a corrupção enorma no país, que é muito corrosiva para a sociedade civil no Afeganistão.
Passemos, então, para os textos da referida reportagem.
Os EUA gastaram US $ 1,5 milhão (£ 1,15 milhão) por dia desde 2001, lutando uma guerra contra a produção de ópio no Afeganistão. Então, por que os negócios do ópio ainda estão crescendo?
É novembro de 2017. A câmera de visão noturna mostra uma rede de ruas em uma cidade na província de Helmand, o centro de cultivo de papoula[1] no Afeganistão.
A câmera gira em torno dos alvos antes que os mísseis são acionados para destruir as plantações. São nove ataques no total, cada um destruindo um edifício individual em uma série de explosões quase simultâneas. Este é um exemplo impressionante de bombardeio de precisão, usando algumas das tecnologias militares mais avançadas já inventadas, incluindo um bombardeiro estratégico B-52, um caça furtivo F-22 Raptor e um lançador de foguete tático M142.
Veja o vídeo a seguir:
https://www.dvidshub.net/video/566987/b-52-f-22-and-himars-strike-against-taliban-revenue-streams
O vídeo desse ataque, no qual oito civis afegãos foram mortos, faz parte de uma série publicada online pelos militares americanos – evidência vívida do progresso de uma campanha de bombardeio de um ano com o codinome “Tempestade de Ferro”.
O objetivo era destruir os laboratórios de heroína no centro do comércio de ópio do Talibã, de cerca de US $ 200 milhões por ano, e envolver cerca de 200 ataques semelhantes. Mas, de acordo com uma nova pesquisa da London School of Economics, a Operação Tempestade de Ferro não foi o que pareceu ser. O estudo descobriu que, apesar da excelente Inteligência, a campanha multimilionária estava tendo um efeito insignificante sobre o Talibã e as redes de tráfico de drogas no Afeganistão.
Então, o que os americanos estavam realmente atacando?
Essa foi a pergunta que o Dr. David Mansfield fez a si mesmo quando viu pela primeira vez aquela salva da campanha militar (salva: tiro de artilharia).
“Foi bizarro”, diz ele. “Eu estava sentado em casa, no Reino Unido, a mais de cinco mil e quinhentos quilômetros do Afeganistão, observando o desenrolar desses ataques incríveis. A tecnologia que os americanos estavam usando era impressionante. Essas bombas pareciam estar indo com precisão absoluta, mas eu estava apenas pensando ‘qual é o alvo aqui?’ ”
O interessante do Dr. Mansfield é que ele estudou a indústria do ópio afegão por mais de duas décadas. Ele diz que a produção de heroína deixa certos sinais reveladores e ele não estava vendo nenhum deles. Mesmo assim, as Forças Americanas afirmavam que os ataques foram um sucesso.
Levaria meses de um trabalho de detetive meticuloso, usando o tipo de experiência geralmente empregado pelos militares – tecnologias avançadas de geomapeamento, análise geoespacial de imagens de satélite, bem como investigação obstinada em terra para poder enxergar o que o Dr. Mansfield já havia percebido que estava acontecendo. Sua conclusão é surpreendente. Apesar dos recursos incríveis que os militares americanos estavam despejando, o Dr. Mansfield e sua equipe estão agora convencidos de que a Força Aérea dos Estados Unidos estava usando caças do século 21 para bombardear pouco mais do que cabanas de lama.
Uma indústria de heroína em expansão
O ópio está profundamente arraigado no conflito no Afeganistão e, em 2019, já era a guerra mais longa da história americana. Os lucros da heroína que produz são usados para financiar o Talibã, bem como grupos terroristas como o chamado Estado Islâmico e a Al Qaeda. E a heroína também impulsiona a corrupção galopante, que é tão corrosiva para a sociedade civil no Afeganistão. Ficou claro como o cultivo de papoula se tornou institucionalizado quando, em 2016, Justin Rowlatt (repórter deste texto), em viagem pelo Afeganistao,esteve em uma fazenda de ópio, no que deveria ser uma área supostamente controlada pelo governo.
Os fazendeiros não sentiram necessidade nem de tentar disfarçar o que estavam cultivando, enquanto milhares de cabeças de papoula de ópio inchadas aparecian alegremente em um campo a apenas meia hora do aeroporto de Mazar-e-Sharif e bem ao lado da estrada principal.
As papoulas tinham sido marcadas na noite anterior e durante a noite a seiva havia escorrido sob uma crosta escura. Cinco ou seis homens trabalhavam continuamente entre as plantas, raspando o látex pegajoso dos bulbos com uma ferramenta em forma de foice, seu shalwar kameez marrom e com as manchas de ópio.
Uma papoula gotejando seiva, que, posteriormente, será transformada em heroína
O fazendeiro, Taza Meer, estava à vontade sob a proteção de um homem de aparência ameaçadora com um AK47[2] pendurado no ombro. “Não se preocupe com ele”, assegurou. “Ele é o policial local.” Cultivar ópio é um crime muito grave no Afeganistão, punível com a morte, mas eis que ali estava um policial dando as boas-vindas a um repórter da BBC em um campo de papoulas no auge da colheita.
Problema que já vinha se arrastando
Em 2017, ou seja, há 5 anos, a evidência do fracasso dos Aliados em conter a produção de ópio era muito clara. Quatro dias antes do início da Tempestade de Ferro, em novembro de 2017, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) anunciou que o cultivo de papoula havia aumentado mais de 120.000 hectares em uma única temporada. Quando as forças americanas e britânicas invadiram o Afeganistão em outubro de 2001, as papoulas eram cultivadas em cerca de 74.000 hectares. Os novos números mostraram que a produção aumentou mais de quatro vezes em 15 anos: agora o ópio estava sendo cultivado em 328.000 hectares.
E houve outra mudança também. No passado, o látex do ópio era seco e contrabandeado para fora do Afeganistão como uma pasta pegajosa para ser refinada em outro lugar. Agora, as autoridades afegãs e ocidentais estimavam que metade, possivelmente mais, do ópio afegão estava sendo processa do em morfina ou heroína. Tornou-se o contrabando mais fácil e também aumentou enormemente os lucros dos traficantes de drogas e do prórpio Talibã, os quais cobram um “imposto” de cerca de 20% dos lucros.
Fonte: UNDOC
Efeito nas ruas dos EUA
Esse aumento na produção de heroína ocorreu em um momento em que os Estados Unidos lutavam para conter sua própria crise de opiáceos.
A Casa Branca declarou que era uma emergência nacional de saúde pública em outubro de 2017. Mais de dois milhões de americanos são viciados em opioides, e overdoses de opioides se tornaram a principal causa de morte na América, à frente de acidentes de carro e violência armada.
A epidemia americana começou com medicamentos prescritos, mas, à medida que as regras sobre a prescrição de opióides se tornavam mais rígidas, os viciados estavam cada vez mais se voltando para a heroína, bem como opióides sintéticos como o Fentanyl. E, claro, o
Afeganistão é de longe o maior produtor de ópio do mundo.
De acordo com os militares dos EUA, 90% da heroína do mundo é feita de ópio cultivado no Afeganistão. Representa 95% do mercado europeu; 90% do mercado canadense. Talvez surpreendentemente, estima-se que a heroína afegã represente apenas uma pequena fração do mercado dos Estados Unidos.
A Agência Antidrogas dos Estados Unidos afirma que apenas um por cento do suprimento dos EUA é do Afeganistão. Diz que praticamente toda a heroína usada na América chega do México e de países sul-americanos. Mas, como acontece com qualquer commodity, se houver oferta maior, o custo cairá, e a repressão às drogas dos EUA estava crescendo com o receio que a produção crescente no Afeganistão aumentasse a oferta mundial e baixasse os preços, tornando-a ainda mais acessível aos americanos.
Ação militar
A lógica da Tempestade de Ferro era simples. Isso em 2019, ou seja, há dois anos. “Estamos atingindo o Talibã onde dói, que são suas finanças”, explicou o comandante das forças, general John Nicholson, em uma entrevista coletiva um dia após a primeira onda de bombardeios. Cerca de 60% das finanças do Talibã vêm do comércio de narcóticos, portanto, atacar as redes de tráfico de drogas que operam em todo o Afeganistão deve reduzir as receitas dos insurgentes, bem como reduzir o fornecimento de heroína em todo o mundo, presumiram planejadores militares. Pelo visto, Nicholson errou feio.
Eles foram inspirados pela ação que os EUA realizaram na Síria, onde bombardeios aéreos contra a indústria ilegal de petróleo do grupo do Estado Islâmico destruíram plataformas, caminhões-tanque e outras máquinas pesadas. A campanha foi celebrada por seu sucesso, reduzindo drasticamente as receitas do chamado Califado e dificultando o pagamento de seus lutadores.
Mas, como acontece com frequência na história do conflito no Afeganistão, essa campanha não seria tão direta quanto os planejadores militares esperavam. A maior prova veio agora em 2021, com a derrocada do governo afegão, devido à saida dos aliados do território afegão e a reconquista por parte do Talibã.
Produção Artesanal De Heroína
A produção de heroína no Afeganistão não é um processo industrial, diz o Dr. Mansfield. As oficinas improvisadas onde os afegãos refinam o ópio não deveriam ser descritas como “laboratórios”, diz ele. Muito artesanal.
Não há jalecos brancos, bicos de Bunsen ou salas esterilizadas. A heroína é geralmente produzida em uma casa comum, com uma parede externa de barro e até seis cômodos, geralmente construídos com barro.
E, como envolve vapores nocivos, geralmente ocorre ao ar livre ou sob um alpendre.
Isso torna o processo difícil de esconder, diz o Dr. Mansfield, porque deixa um padrão distinto de fogueiras, geralmente em fileiras. Outras demonstrações dessas “fabricas” são as pilhas de tambores de óleo, talvez uma prensa para extrair a morfina, combustível – botijões de gás, carvão ou madeira – para os incêndios, e barris contendo produtos químicos, bem como pessoas e veículos indo e vindo.
Os militares dos EUA divulgaram 23 vídeos mostrando ataques a supostos laboratórios de heroína. O Dr. Mansfield diz que ficou claro apenas de ver os vídeos que não havia produção significativa de heroína na grande maioria deles. “Eu simplesmente não estava vendo os sinais reveladores da atividade criminosa”, diz ele.
Um olho no céu
Mas o Dr. Mansfield sabia que, se pretendia apresentar um caso convincente, precisaria de mais evidências e ele reconheceu que conhecia as pessoas certas para ajudar.
Ele ligou para a Alcis, uma start-up de tecnologia no Reino Unido que se especializou no uso de análises geoespaciais para descobrir o que estaria contecendo em locais remotos.
O Dr. Mansfield encarregou a equipe da Alcis de identificar os locais em que os americanos bombardearam. As coordenadas da grade foram suprimidas de praticamente todos os vídeos.
Depois de descobrir onde ocorreu o ataque, eles poderiam usar o enorme arquivo de imagens de satélite do Afeganistão para tentar descobrir o que estava acontecendo no local de antemão.
Não foi fácil, mas a Alcis conseguiu identificar 31 edifícios e, em alguns casos, o nível de detalhes que eles foram capazes de fornecer foi surpreendente.
Na verdade, de todos os locais examinados pela Alcis e pelo Dr. Mansfield, apenas um estava definitivamente produzindo drogas quando foi atingido – dois compostos adjacentes, contendo cerca de 200 barris.
Imagens térmicas mostraram os barris coloridos de branco, indicando que estavam quentes e ativamente no processo de refino da heroína.
Indo mais a fundo
Agora que o Dr. Mansfield descobriu os locais de alguns dos ataques, ele poderia cavar um pouco mais fundo. Ele conseguiu que uma equipe de pesquisadores afegãos entrevistasse pessoas nas comunidades afetadas pelos ataques. Eles falaram com proprietários de laboratórios, operadores e trabalhadores, bem como com 450 agricultores em Helmand e outras áreas de produção de ópio.
As entrevistas mostraram que a inteligência americana estava indo bem. A maioria dos locais que os pesquisadores examinaram foram usados como laboratórios de heroína no passado, mas – e aqui está a coisa – esmagadoramente eles não estavam ativos no momento dos ataques.
Os entrevistados disseram que os laboratórios funcionavam intermitentemente, talvez metade do tempo, e que praticamente todos os materiais usados na produção de heroína eram removidos quando estavam inativos. Novos laboratórios também poderiam ser configurados em alguns dias, ou seja, assim que um laboratório saia da operação, um novo surgia. Essa é a tática.
Sem estoques significativos de heroína, ou dos produtos químicos e equipamentos usados para produzi-la nos laboratórios inativos, seu valor como alvos era insignificante.
O Dr. Mansfield e sua equipe estimam cerca de US $ 10.000 a US $ 20.000 por composto, no máximo.
Para o Dr Mansfield, a perda para os narcotraficantes quando você atinge essencialmente uma construção apenas de lama é nada.
Uma mudança de comando
O Dr. Mansfield não é o único a questionar o valor estratégico desta operação. No início da campanha, algumas autoridades americanas de alto escalão ficaram incomodadas com a maneira como a campanha estava sendo travada.
Alguns meses depois, a secretária da Força Aérea, Heather Wilson, estava claramente preocupada com o custo, ao dizer: “Não deveríamos usar um F-22 para destruir uma fábrica de narcóticos no Afeganistão”, em uma conferência em fevereiro de 2018.
O F-22 é o caça stealth mais avançado do mundo. Cada aeronave custa $ 140 milhões de dólares e custa pelo menos $ 35.000 por hora para voar.
Em agosto de 2018, o tenente-general Jeffrey Harrigian, chefe do Comando Central das Forças Aéreas dos Estados Unidos em Doha, mostrou-se preocupado, porque a política de ataque às fontes de receita no Afeganistão não estava funcionando tão bem como na Síria.
O comando das forças da Otan e dos EUA no Afeganistão foi mudado em setembro de 2018 e a estratégia de abater locais de produção de ópio também. Em vez disso, o general Millar, novo comandante, desenvolveu uma estratégia mais agressiva de alvejar o Talibã diretamente com ataques aéreos e incursões. O objetivo final seria um acordo de paz entre o governo talibã e o afegão, que acabou não acontecendo.
Um estado narco
Quando as Forças dos EUA em Cabul foram solicitadas a responder às descobertas do Dr. Mansfield, ou seja, que os ataques não resultavam em nada contra os narcotraficantes afegãos, a BBC obteve como resposta que “todos os esforços dos Eua visavam estabelecer as condições para um acordo político e salvaguardar os interesses nacionais, sendo a grande maioria dos ataques letais contra o Talibã ou o ISIS. Porém o que se viu neste ano de 2021, mais precisamente no mês de agosto, é que o Talibã não foi atingido, ao contrário, cresceu tanto ao ponto de retomar ao poder do pequeno país.
Quando a campanha aérea terminou, os militares dos EUA relataram que “a produção de narcóticos no Afeganistão permaneceu em níveis elevados”.
E uma pesquisa da ONU em 2018 mostrou que o ópio foi cultivado em 263.000 hectares em 2018 – 20% abaixo de 2017. Mas esse declínio não foi devido a uma ação militar. A ONU explicou que a produção de papoula caiu devido a uma forte seca no norte do país e aos preços significativamente mais baixos após a safra recorde de 2017.
O Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR), John Sopko, não mede as palavras, rotulando o Afeganistão um “narco-estado”.
O ópio representa cerca de um terço do PIB do Afeganistão. É, de longe, a maior safra comercial do país e fornece quase 600.000 empregos em tempo integral.
Isso tudo, apesar de os militares dos EUA gastaram US $ 1,5 milhão por dia em narcóticos desde a invasão em outubro de 2001, ou quase US $ 9 bilhões.
Por fim, temos agora um pais dominado pelo Talibã e pelos narcos.
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Fonte: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-47861444
[1] Ao se fazer cortes na cápsula da papoula, quando ainda verde, obtém-se um suco leitoso, o ópio (a palavra ópio em grego quer dizer suco). Quando seco, este suco passa a se chamar pó de ópio. Nele existem várias substâncias diferentes. A heroína é então uma dessas substâncias.
[2] O AK-47, ou AK como é oficialmente conhecida, também conhecida como Kalashnikov, é um fuzil de assalto de calibre 7,62x39mm criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov e produzido na União Soviética pela indústria estatal IZH. É a arma de fogo originária da família de fuzis Kalashnikov