Christus Totus: O frágil fundamento da eclesiologia da Igreja Católica Romana
A Igreja Católica Romana possui muitas singularidades em seu corpus doutrinário. Um dos conceitos de fé mais importantes, embora menos conhecido, é a concepção agostiniana do Christus totus, expressão latina que significa “Cristo total”. Esse conceito abarca tanto a eclesiologia católica como também sua eclesiologia, unindo as duas matérias no sentido de que o entendimento católico sobre a igreja é totalmente cristológico. O Catecismo da Igreja Católica afirma que “Cristo e a Igreja são, pois, o ‘Cristo total’ (Christus totus). A Igreja é una com Cristo.”[1] Esse entendimento vem especialmente da imagem eclesiástica do “Corpo de Cristo”, expressão utilizada por Paulo em textos como 1Coríntios 12:27, Efésios 4:12 e Colossenses 1:24.
No entendimento católico, a união de Cristo com a Igreja, representada por Paulo a partir da imagem de corpo-cabeça, implica em uma união ontológica. Citando Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), o Catecismo convida a que
dêmos graças pelo facto de nos termos tornado não apenas cristãos, mas o próprio Cristo. Estais a compreender, irmãos, a graça que Deus nos fez, dando-nos Cristo por Cabeça? Admirai e alegrai-vos: nós tornámo-nos Cristo. Com efeito, uma vez que Ele é a Cabeça e nós os membros, o homem completo é Ele e nós […].[2]
Assim, pela concepção agostiniana, adotada em plenitude pelo catolicismo, a Igreja é parte integrante do próprio Cristo, sendo ela “o sacramento da salvação, o sinal e o instrumento da comunhão de Deus e dos homens.”[3] Por outro lado, não podemos confundir a Igreja com Jesus, enquanto, do mesmo modo, não podemos separá-los. Joseph Ratzinger, no documento Dominus Iesus, afirma que “assim como a cabeça e os membros de um corpo vivo, embora não se identifiquem, são inseparáveis, Cristo e a Igreja não podem confundir-se nem mesmo separar-se, constituindo invés um único ‘Cristo total’.”[4] Em resumo, ainda que a Igreja não seja a própria pessoa do Cristo, ela também não pode ser separada dele.
A doutrina do Cristus Totus, portanto, a partir da metáfora paulina do corpo-cabeça, ensina que a Igreja e Jesus Cristo compartilham de uma íntima união, não podendo ser separados. A Igreja Católica assume a interdependência da graça-natureza, admitindo que toda graça se expressa por meio de uma natureza. O Verbo (graça) manifestou-se num corpo físico (natureza) e, após sua morte, ressurreição e ascensão, Jesus Cristo (graça) se expressa por meio da Igreja (natureza). Por essa razão é a Igreja chamada também de “sacramento”, pois ela mesma “possui […] e comunica a graça invisível que significa”.[5] Assim, a Igreja Católica, no conceito do Cristo Total, é o prolongamento da encarnação de Cristo e, com ele, mediadora da salvação mediante a ministração dos sacramentos.
O problema do Christus Totus
Mesmo uma análise mais superficial da ideia do Cristo Total já nos aponta diversos problemas. A eclesiologia católica é definida a partir de conceitos cristológicos (como a encarnação) e isso afeta diretamente sua soteriologia. O maior problema do Christus Totus, portanto, é relativo às suas implicações soteriológicas:
- A obra salvífica de Cristo está presente na Igreja e, além disso, é ministrada nela e por ela, o que, como consequência, acaba por negar a exclusividade e suficiência do Cristo histórico – em outras palavras, o Christus Totus nega o Solus Christus;
- A Igreja, como parte integrante do Cristo Total, apropria-se das funções exclusivas de Cristo como único mediador entre Deus e os homens – um paradoxo assumido pelo catolicismo;
- Como parte integrada ao Cristo, a Igreja torna-se exclusiva na ministração plena dos meios de graça, de modo que, à parte da Igreja Romana, as demais comunidades de fé não tem acesso pleno à graça divina, por exemplo, na justificação e na santificação.
O grande problema do Christus Totus, portanto, é negar o Solus Christus, criando uma terceira concepção: o Solus Christus Totus, uma definição que englobe tanto a necessidade de Jesus Cristo (negando-lhe, porém, a suficiência) quanto a necessidade da Igreja visível – identificada na Igreja Católica Romana. Essa concepção é rejeitada pela teologia protestante, que reafirma o Solus Christus, isto é, a exclusividade e suficiência da pessoa e da obra do Jesus histórico.
É importante fazer um adendo aqui. O Solus Christus não exclui a igreja como se a obra de Cristo fosse independente da igreja. Afirmamos que a Igreja relaciona-se diretamente com a obra exclusiva e suficiente do Cristo histórico nos seguintes termos:
- A Igreja é gerada pela obra de redenção completa e perfeita de Jesus, sendo essa obra a causa primária da justificação do homem mediante a fé (Rm 3:24; Ef 1:7);
- A Igreja é a comunidade dos salvos que crescem em santidade e maturidade espiritual mediante os meios de graça oriundos da obra perfeita de Cristo (Rm 6:22; Ef 4:11-13);
- A Igreja é proclamadora da obra de Cristo a todos os homens (Mt 28:19; Mc 16:15; At 8:4).
Portanto, longe de rejeitar a necessidade ou importância da Igreja, o Solus Christus garante que a obra de salvação é plenamente realizada e completada pelo Jesus Cristo encarnado, sendo a Igreja o resultado dos benefícios de tal obra. O Christus Totus alega que a Igreja participa da obra da salvação, sendo ela a presentificadora, administradora e medianeira dos benefícios da salvação; no protestantismo, a Igreja é resultante, beneficiária e proclamadora da obra eterna do único mediador. Em resumo, a Igreja não opera a salvação junto com Cristo; antes, é composta por aqueles que já obtiveram essa salvação por meio do único mediador Jesus Cristo, homem (1Tm 2:5).
O Christus Totus é bíblico?
O ponto central e final de nossa abordagem a esse tema é o fundamento bíblico para a doutrina do Cristo Total. Será que a Bíblia ensina o conceito católico de Igreja como parte integrante de Cristo? Vejamos os textos utilizados pelo catolicismo para fundamentar essa ideia.
Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor, e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues; mas levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer. (Atos 9:3-6).
A história da conversão de Paulo é um evento marcante narrado por Lucas em Atos, tanto que aparece mais duas vezes (capítulos 22 e 26) além dessa no capítulo 9. O centro do argumento está na aparente identificação própria da Igreja consigo mesmo por parte de Jesus. Paulo era um ávido perseguidor dos crentes (At 26:9-11), mas, ao ser detido no caminho de Damasco por uma luz, ouviu a voz do próprio Jesus Cristo lhe dizendo: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (v. 5). Esse texto é muito semelhante à imagem do julgamento dos bodes e ovelhas em Mateus 25:31-46. No entendimento católico, perseguir os crentes era o mesmo que perseguir a Cristo, pois os crentes são o próprio Cristo dentro do conceito católico do Christus Totus.
Entretanto, apesar da interpretação gramaticalmente possível, essa interpretação católica é teologicamente improvável por algumas razões. Em primeiro lugar, o conceito do Christus Totus é muito mais amplo e profundo do que se pode extrair de Atos 9:3-6; esse texto, no máximo, nos mostra que há uma identificação entre Cristo e a Igreja. Isso não é suficiente para argumentar que a Igreja seja parte integrante do próprio Cristo.
Em segundo lugar, encontramos Paulo pedindo a Filemom que recebesse Onésimo “como se fosse a mim mesmo” (v. 17) e comparando Mateus 8:8 com Lucas 7:6-7, onde a pessoa do Centurião é identificada com a de seus amigos, fica claro que é possível um tipo de identificação pessoal entre duas pessoas sem que elas sejam parte integrante umas das outras. Desse modo, é muito provável que a identificação de Jesus com a Igreja nos testemunhos de Paulo (e mesmo em Mateus 25) seja num sentido bastante distinto daquele que propõe a Igreja Católica. Sabemos que a Igreja está em íntima união com Cristo, e que esse relacionamento é próprio da aliança que temos com ele pelo seu sangue, mas isso não nos torna parte integrante de Jesus, muito menos mediadores e presentificadores de sua obra salvadora. Estamos em união com Cristo, mas não somos parte de Cristo.
Nesse ponto o Catolicismo lança mão dos textos paulinos em que a Igreja é chamada de “corpo de Cristo”. Assim, se ela é o “corpo” de Cristo, então não se pode separar o corpo da cabeça: ambos formam um só “Cristo Total”. Novamente vemos a tendência católica de ir além do que o texto nos permite concluir. Quando examinamos a maneira como Paulo usa a expressão “corpo de Cristo”, fica claro que ele sempre tem em mente um sentido metafórico, nunca ontológico. Paulo usa essa expressão de maneira didática, estabelecendo comparações úteis para transmitir os conceitos que ele tinha em mente:
- Unidade da igreja, tanto dos crentes entre si quanto eles com Deus (1Co 10:16; Cl 3:15)
- Diferença de dons e ministérios, mas que contribuem para edificação mútua (1Co 12:7; Ef 4:12; Cl 1:24);
- Submissão, como o corpo obedecendo à cabeça (Ef 5:23-24; Cl 2:17).
Quando lemos João 15:1-6, por exemplo, encontramos Jesus utilizando uma metáfora para realçar a necessidade de seus discípulos produzirem frutos. Os discípulos são os ramos que, enxertados à videira, recebem todos os nutrientes para serem capazes de produzir frutos; caso não produzam, são cortados e lançados fora. Somente ouvindo a Palavra e permanecendo em Cristo os discípulos poderiam produzir frutos. A intenção de Jesus não é descrever sua relação com os discípulos em termos ontológicos, mas dentro do contexto do discipulado – eles ouvem as palavras, obedecem aos mandamentos e assim produzem frutos (v. 3, 7, 10).
Conclusão
O ensino católico sobre o Christus Totus é oposto à proposta protestante do Solus Christus. Enquanto a Igreja Católica se vê como um prolongamento presente da encarnação de Cristo, presentificadora e mediadora de sua obra de redenção, o protestantismo rejeita essas noções enfatizando que somente o Jesus Cristo histórico encarnou, somente ele opera a obra de salvação e somente ele media nossa relação com Deus. A Igreja emerge da obra vicária de Cristo, é beneficiária dela e a proclama em toda a terra. Somos o corpo de Cristo nos sentidos comparativos e didáticos pretendidos pelo apóstolo Paulo, nunca além deles e, portanto, não no sentido em que Agostinho entendia. A eclesiologia católica é frágil, pois depende de uma ideia que não se sustenta no ensino apostólico preservado na Bíblia Sagrada.
———–
[1] CIC 795.
[2] CIC 795, citando Santo Agostinho, In Iohannis evangelium tractatus 21, 8: CCL 36, 216-217 (PL 35, 1568).
[3] CIC 780.
[4] Joseph Ratzinger, Dominus Iesus, Capítulo IV, 16.
[5] CIC 774.
Autor – Rafael Nogueira