Ayaan Hirsi Ali: O poder da “blasfêmia”

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É quase um milagre que Ayaan Hirsi Ali, uma das heroínas de nosso tempo, ainda esteja viva. Os fanáticos islâmicos quiseram acabar com ela e não conseguiram, e não é impossível que continuem tentando, pois se trata de um dos mais articulados, influentes e determinados adversários que eles têm no mundo. Talvez tanto quanto suas ideias e sua coragem, seja seu exemplo o que atiça o ódio dos militantes da Al Qaeda, o Estado Islâmico e demais seitas fundamentalistas do Oriente Médio e da África contra ela. Porque Ayaan Hirsi Ali é uma demonstração viva de que, não importa quão estritos sejam a doutrinação e a opressão exercidas sobre um ser humano, o espírito rebelde e libertário sempre é capaz de romper as barreiras que se empenham em subjugá-lo.

Hirsi Ali nasceu na Somália, em uma família conservadora, sofreu a mutilação genital na puberdade e foi educada na Arábia Saudita e no Quênia dentro da mais severa observância muçulmana: usou ohijab, comemorou a fatwa que condenava Salman Rushdie à morte, mas, quando seus pais quiseram casá-la com um parente distante contra a sua vontade, atreveu-se a fugir e pediu asilo na Holanda. Ali aprendeu holandês, chegou a ser deputada pelo partido liberal e desde então começou uma campanha, que não parou até agora, contra tudo o que há de violento, intolerante e discriminatório contra a mulher no islã. Em seus primeiros livros, valia-se muito de sua própria autobiografia para mostrar os extremos de crueldade e cegueira a que o fanatismo muçulmano podia levar e para explicar as razões de sua apostasia e ruptura com a religião de sua família.

No que acaba de publicar nos Estados Unidos, “Heretic. Why Islam Needs a Reformation Now”(Herege – Por que o islã precisa de uma reforma imediata, com lançamento previsto no Brasil em junho pela Companhia das Letras), critica, com sua franqueza habitual, os Governos ocidentais que, para não se afastarem da correção política, se empenham em afirmar que o terrorismo de organizações como Al Qaeda e Estado Islâmico é alheio à religião muçulmana, uma deformação aberrante de seus ensinamentos e princípios, algo que, afirma ela, é rigorosamente falso. Seu livro sustenta, ao contrário, que a origem da violência que aquelas organizações praticam tem sua raiz na própria religião e que, por isso, a única maneira eficaz de combatê-la é com uma reforma radical de todos os aspectos da fé muçulmana incompatíveis com a modernidade, a democracia e os direitos humanos.

Essa transformação, que Hirsi Ali compara com o que significaram para o cristianismo as críticas de Voltaire e a reforma de Lutero, consistiria em modificar cinco conceitos que, em sua opinião, mantêm o islã preso no século VII: 1) a crença de que o Corão expressa a imutável palavra de Deus e a infalibilidade de Maomé, seu porta-voz; 2) a prioridade que o islã concede à outra vida sobre a do aqui e agora; 3) a convicção de que a sharia constitui um sistema legal que deve governar a vida espiritual e material da sociedade; 4) a obrigação do muçulmano comum de exigir o justo e proibir o que considera errado; e 5) a ideia da jihad ou guerra santa. A quem pergunta o que restaria do islã se este renunciasse a esses cinco pilares de sua fé, Hirsi Ali responde que o cristianismo, antes da reforma protestante, não era menos sectário, intolerante e brutal, e que só a partir desta excisão é que a religião cristã começou o processo que a levaria a se separar do Estado e à coexistência pacífica com outras crenças, e graças a isso prosperaram as liberdades e os direitos civis no mundo ocidental.

Mais ainda, nos últimos capítulos de seu livro, Hirsi Ali oferece um registro detalhado de reformadores —clérigos, professores, intelectuais, políticos, jornalistas— que, tanto dentro como fora dos países muçulmanos, segundo ela, já colocaram em marcha essa reforma. Ela contaria com a solidariedade calada de grande número de fiéis —entre eles, muitíssimas mulheres— conscientes de que só graças a essa atualização de sua religião poderiam seus países abraçar a modernidade e sair do atraso medieval que significa, em pleno século XXI, continuar lapidando as adúlteras, cortando as mãos dos ladrões, decapitando os ímpios e apóstatas e considerando que, perante a lei, o testemunho de uma mulher vale só a metade do de um homem. Com muita razão, Hirsi Ali exorta os governos e as lideranças políticas dos países democráticos a dar seu apoio a quem, arriscando sua vida, trava essa difícil batalha religiosa e cultural, em vez de, por razões de Estado, amparar regimes despóticos como o da Arábia Saudita, onde sobrevivem aqueles horrores, e outros não menos atrozes, como os chamados crimes de honra: o pai ou os irmãos que assassinam a mulher estuprada, pois esse estupro “desonrou” a família da vítima.

Nada me agradaria mais do que acreditar, como diz Hirsi Ali, que essa reforma já começou e que essa espessa treva religiosa que envolve a vida em todos os países muçulmanos começou a se dissipar. O que me faz duvidar são os exemplos contrários – o agravamento do fanatismo e a atração irresistível que exercem as organizações terroristas sobre tantos adolescentes e até crianças— das quais seu livro dá conta. São tão numerosos e são descritos com tanta precisão que a impressão que se tira dessas páginas é exatamente a oposta. Ou seja, que, em lugar de um processo de libertação, muitos desses países, como demonstra o fracasso da chamada Primavera Árabe, ao invés de se aproximarem da modernidade livrando-se de crenças anacrônicas e sangrentas, são essas as que mais parecem renascer, se fortalecer e infectar boa parte da sociedade. Ela mesma conta como, com exceção da Tunísia –onde o processo de laicização parece ter realmente pegado—, em cidades como Bagdá, onde há vinte ou trinta anos o véu retrocedia e muitas mulheres mostravam os cabelos e se vestiam à maneira ocidental, agora é muito raro ver alguma que não use o hijab.

O caso da própria Hirsi Ali também é muito eloquente. Quando em 2004 o cineasta Theo van Gogh foi assassinado em Amsterdã, o assassino, Mohammed Bouyeri, cravou no peito de sua vítima uma carta para Hirsi Ali advertindo-a de que ela seria a próxima assassinada por trair o islã. Em vez de receber solidariedade, ela se viu ameaçada pela ministra da Imigração da Holanda, uma senhora de mandíbula quadrada chamada Rita Verdonk, de perder a nacionalidade holandesa, e seus vizinhos lhe pediram que abandonasse o apartamento onde morava, pois os colocava em perigo de sofrer um atentado. Agora mesmo, nos Estados Unidos, onde vive, é objeto de críticas muito duras de supostos “liberais” que a acusam de “islamofóbica” e, no seminário que apresenta na Universidade Harvard, não é raro que se inscrevam alunos e alunas que fazem isso só para poder insultá-la. Precisa, por isso, viver permanentemente protegida.

O extraordinário é que nada disso parece demovê-la. Ayaan Hirsi Ali, a julgar por este quarto livro, continua, vacinada contra o desalento, exercendo o que chama de “o poder da blasfêmia”, sua campanha contra o fanatismo e a estupidez que maculam nosso tempo e o enchem de cadáveres, convencida de que a sensatez e a razão acabarão por se impor à irracionalidade e ao espírito da tribo. Duas vezes em minha vida tive a chance de escutá-la falar. A primeira, na Holanda, e a segunda, vários anos depois, em Washington. Em ambos os casos a ouvi expor suas teses com uma fundamentação intelectual repleta de gravidade e, ao mesmo tempo, com uma suavidade e uma elegância que davam ainda mais força persuasiva àquilo que dizia. E, em ambos, pensei o mesmo: que extraordinário que seja uma somali, educada na Arábia Saudita e no Quênia, a pessoa capaz de romper com o obscurantismo e a barbárie que quiseram lhe impor, que defenda com tanta convicção e tanto ânimo a cultura da liberdade, a melhor contribuição do Ocidente ao mundo, diante de auditórios de ocidentais apáticos e céticos, que ignoram quão privilegiados são e o tesouro que possuem, e que tenha de ser Ayaan Hirsi Ali, depois de passar pelo inferno, quem venha a relembrar isso.

Mario Vargas Llosa, 2015 – Extraído do site do  EL PAÍS, SL, 2015

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