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Em Atos 13.48, Lucas escreve que “os gentios alegraram-se e bendisseram a palavra do Senhor; e creram todos os que foram ordenados para a vida eterna” (At.13.48). À primeira vista, desconsiderando completamente o contexto e o original grego, este texto parece bem desafiador. Ele parece dizer que Deus preordenou algumas pessoas para a vida eterna e outras para a morte eterna e que isso se realizou naquela ocasião. Isso, é lógico, colocaria em dúvida todo o nosso estudo sobre a eleição corporativa.
Mas, antes de examinarmos o texto em si, é importante notar que este verso, se for interpretado da forma que os calvinistas o leem, traria problemas sérios para a própria doutrina calvinista, em primeiro lugar. Isso porque, ao dizer que todos os que foram ordenados à vida eterna creram, deixa implícito que todos os que não creram naquela ocasião não haviam sido “predestinados” à salvação. Isso confronta o que ensinam os calvinistas, pois um eleito, para eles, não necessariamente aceita a mensagem do evangelho logo na primeira vez que o vê.
Os calvinistas concordam que “eleitos” podem ser salvos somente no leito de morte, ou depois de ouvirem muitos sermões. Se a interpretação deles é válida para este verso, teriam que corrigir todo este discurso e inferir que todos os que eram eleitos creram naquela pregação e que todos os que não creram naquela ocasião não eram eleitos, e, por conseguinte, não passariam a crer nunca. John William fala sobre isso nas seguintes palavras:
“Se ‘todos quantos estavam ordenados para a vida eterna’ creram nesse dia, então todos os demais eram reprovados, e, por estarem condenados à punição eterna, outra pregação de Paulo a eles seria inútil. Agora, é difícil explicar que tão completa separação em duas classes aconteceu por toda uma ampla comunidade em um único dia, e ainda mais difícil explicar que isto foi revelado a Lucas a fim de que ele pudesse registrá-la. Nossa surpresa é ainda maior quando lembramos que, segundo essa teoria, nem mesmo os próprios eleitos podem ter certeza de sua eleição”[1]
Então precisamos entender o sentido real do texto à luz de seu contexto e do original grego. A palavra aqui utilizada foi tasso, que possui diversos significados, e Lucas, o escritor do Evangelho de Lucas e de Atos dos Apóstolos, a usou quatro vezes, com quatro significados distintos, sendo eles:
a) Sujeitar
“Pois eu também sou homem sujeito [tasso] a autoridade, e com soldados sob o meu comando. Digo a um: ‘Vá’, e ele vai; e a outro: ‘Venha’, e ele vem. Digo a meu servo: ‘Faça isto’, e ele faz” (Lucas 7:8)
b) Designar
“Isso levou Paulo e Barnabé a uma grande contenda e discussão com eles. Assim, Paulo e Barnabé foram designados [tasso], juntamente com outros, para irem a Jerusalém tratar dessa questão com os apóstolos e com os presbíteros” (Atos 15:2)
c) Ordenar
“Então disse eu: Senhor, que farei? E o Senhor disse-me: Levanta-te, e vai a Damasco, e ali se te dirá tudo o que te é ordenado [tasso] fazer” (Atos 22:10)
d) Assinalar
“E, havendo-lhe eles assinalado [tasso] um dia, muitos foram ter com ele à pousada, aos quais declarava com bom testemunho o reino de Deus, e procurava persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde” (Atos 28:23)
Assim vemos que Lucas a usou em quatro ocasiões diferentes, e todas elas em sentidos distintos. Isso deveria ser suficiente para mostrar a qualquer leitor honesto da Bíblia que a palavra tasso não define a questão por si só, e que “ordenar” não é a única tradução correta possível para a palavra. A Concordância de Strong, mundialmente reconhecida como a melhor concordância nominal de todos os tempos, expressa bem este aspecto polissêmico da palavra. Dentre os seus possíveis significados, ela nos mostra:
5021 τασσω tasso
forma prolongada de um verbo primário (que mais tarde aparece apenas em
determinados tempos); TDNT – 8:27,1156; v
1) colocar em ordem, situar.
1a) colocar em uma determinada ordem, organizar, designar um lugar, apontar.
1a1) designar (apontar) algo para alguém.
1b) apontar, ordenar, arrumar.
1b1) designar por responsabilidade ou autoridade própria.
1b2) apontar mutuamente, i.e., concordar sobre.
Como vemos, “designar” é um dos significados plausíveis da palavra e é, de fato, um dos mais recorrentes do termo. É por isso que a Nova Versão Internacional (NVI) traduz Atos 13:48 da seguinte maneira:
“Ouvindo isso, os gentios alegraram-se e bendisseram a palavra do Senhor; e creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna” (Atos 13.48)
A Almeida Corrigida e Revisada Fiel traduz por “estavam ordenados”, ao invés de “haviam sido” ordenados ou designados. Como o tempo verbal está no passado, é fato que essa designação é anterior à fé, mas o sujeito é oculto e não há nada no texto que nos leve a crer que essa designação ocorreu desde a eternidade passada. Isso é claramente ir muito além daquilo que está escrito. Se o texto tivesse relação com algum decreto ou predestinação divina, a palavra empregada possivelmente teria sido proorizo, e não tasso.
É digno de nota que tasso nunca é usada na Bíblia (seja por Lucas ou por qualquer outro escritor) no sentido de predestinação divina, como um decreto eterno de Deus. Adam Clarke, por exemplo, nos diz que “a palavra não inclui nenhum idéia de preordenação ou predestinação de qualquer espécie”[2]. Se a Bíblia nunca usa tasso neste sentido, seria estranho que Lucas optasse por usar esta palavra se ele tinha em mente um decreto eterno de Deus.
Ele teria uma palavra (proorizo) pronta, a mão, que poderia ter sido perfeitamente utilizada por ele caso ele quisesse e que expressaria perfeitamente bem este sentido, mas preferiu utilizar uma que nunca expressa predestinação divina em toda a Bíblia.
Os calvinistas teriam também que fazer outra inferência que não está no texto, que é a presunção de que o sujeito que designa é Deus, quando o sujeito é oculto. Eles “estavam designados”, mas por quem? Há duas possibilidades reais: por Deus ou por eles mesmos. Ou Deus os designou antes de eles crerem, ou eles próprios designaram-se a si mesmos em seus corações. Há quem defenda ambas as teorias. Richard Watson é um dos que defendem que o agente é o homem. Ele diz:
“O significado do texto é que todos quantos estavam determinados e decididos pela vida eterna, – todos quantos estavam aplicados e decididos pela salvação, – creram. Pois que o historiador está falando do papel cândido e sincero dos ouvintes dos apóstolos, em oposição aos blasfemos judeus, isto é, dos gentios que, ‘ouvindo isto, alegraram-se, e glorificavam a palavra do Senhor’, é evidente a partir do contexto”[3]
A análise do grego não vai além disso. Ela nos mostra que o termo tasso possui diversos significados possíveis (dentre os quais designar), que a palavra nunca aparece em relação a um decreto divino ou predestinação (o que seria proorizo e não tasso), que antes de os gentios crerem já estavam dispostos (embora não possamos saber desde quando) e que o sujeito oculto nos leva a duas possibilidades reais: Deus ou o homem. Para definir a questão, a análise do contexto é profundamente importante aqui.
Atos 13:48 em seu contexto
Paulo e Barnabé foram pregar o evangelho em Antioquia, no território dos gentios (v.14). Na sinagoga, ele dirigiu sua mensagem aos israelitas e aos gentios que temem a Deus (v.16). Depois de fazer um breve resumo do evangelho, ele diz que os israelitas não reconheceram Jesus e o condenaram (v.27). Após a pregação, Lucas diz que “muitos dos judeus e estrangeiros piedosos convertidos ao judaísmo seguiram Paulo e Barnabé” (v.13). Assim vemos que Paulo e Barnabé conseguiram seguidores naquele dia, embora o texto bíblico ainda não diga que eles passaram a crer naquele instante.
Eles voltaram a pregar o evangelho ali no sábado seguinte (v.44), mas os judeus ficaram com inveja e começaram a contradizer Paulo (v.45). Este, então, disse que “era necessário anunciar primeiro a vocês a palavra de Deus; uma vez que a rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, agora nos voltamos para os gentios” (v.46). Ao ouvirem isso, “os gentios alegraram-se e bendisseram a palavra do Senhor; e creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna” (v.48).
Então, diante do contexto, vemos que:
- Paulo dirigiu sua mensagem a gentios que já temiam a Deus (v.16), como Cornélio, que já era “homem justo e temente a Deus” (At.10:22), embora ainda não cresse em Jesus. Antes de crerem, eles já haviam designado seus próprios corações a temerem a Deus.
- Eles já haviam seguido Paulo e Barnabé no sábado anterior. Embora ainda não cressem, já haviam “dispostos” seus corações para seguirem Paulo e Barnabé, o que significa que eles já estavam inclinados a crer, designados a isso.
- A razão porque os judeus não estavam “designados” à vida eterna não era porque Deus não os escolheu, mas porque eles rejeitaram o chamado divino e julgaram a si mesmos indignos da vida eterna. Deste modo, a mensagem foi levada também aos gentios, que creram, pois estavam designados a isso desde o sábado anterior, quando seguiram Paulo e Barnabé e lhes pediram que pregassem novamente no sábado seguinte.
Sendo assim, a conclusão lógica diante do contexto é que os gentios tementes a Deus, ao decidirem seguir Paulo e Barnabé, julgaram-se “dignos da vida eterna”, diferentemente dos judeus incrédulos, e, consequentemente, estavam designados a ela. Por isso, no sábado seguinte eles não hesitaram ao ouvir novamente a mensagem e creram. Independentemente de quem é o agente que designa, o fato é que essa designação não ocorreu arbitrariamente na eternidade, mas a partir do momento em que eles seguiram os apóstolos, mostrando boa vontade para com o evangelho.
Como já dissemos, o agente pode ser Deus ou o homem. No caso de Deus, o verso deve ser interpretado como dizendo que, a partir do momento em que eles passaram a aceitar o evangelho, eles haviam sido ordenados (por Deus) à vida eterna, sob a condição de permanecerem firmes até o fim. No caso do agente ser o homem, o texto está dizendo que cada gentio dispôs seu próprio coração para aceitar a vida eterna, antes de crer. A fé, em ambos os casos, sucede uma regeneração parcial que todo e qualquer arminiano clássico crê. A fé é infundida no crente somente depois que este aceita o evangelho, que é o que ocorreu aqui.
Há um contraste estabelecido aqui entre os judeus e os gentios. Os judeus recusaram o chamado divino e julgaram-se indignos da vida eterna. Os gentios, por outro lado, aceitaram o chamado divino e julgaram-se dignos da vida eterna. Como diz Lumby, “os judeus estavam agindo de forma a manifestarem-se indignos; os gentios estavam tornando manifesto seu desejo de ser julgados dignos”[4].
É desta forma que os gentios já estavam designados à vida eterna e os judeus não. Não é um caso de arbitrariedade divina. Até mesmo o calvinista Buswell reconheceu isso, ao dizer:
“Na verdade, as palavras de Atos 13.48,49 não são necessariamente uma referência à doutrina do decreto eterno de Deus sobre a eleição. O particípio passivo tetagmenoi pode simplesmente significar ‘pronto’, e podemos muito bem ler: ‘Todos os que foram preparados para a vida eterna, creram’”[5]
Dean Alford é outro calvinista que também rejeita a tese de que este versículo prova alguma coisa em termos de eleição individual incondicional à salvação. Ele diz:
“O significado desta palavra dispostos deve ser determinado pelo contexto. Os judeus julgaram-se indignos da vida eterna (versículo 46); os gentios, tantos quantos estavam dispostos para a vida eterna, creram. Por quem dispostos, aqui não é declarado (…) achar que este texto afirma uma pré-ordenação para a vida é forçar tanto a palavra quanto o contexto a um significado que eles não contêm”[6]
Howard Marshall é mais detalhista e também faz questão de analisar o contexto antes de concluir:
“O plano de Deus necessitava que o Evangelho fosse primeiro pregado aos judeus, mas também, quando eles como comunidade o rejeitassem, aos gentios, conforme Is 49.6. Pois o propósito de Deus incluía a reunião dos gentios em um reino. Foi esta profecia que se cumpriu na resposta dos gentios em Antioquia. Pela razão dos gentios, como tais, terem sido ordenados à vida eterna – sob a condição de fé – que agora eles creram. A afirmação de Lucas, portanto, não se preocupa em delimitar um grupo particular de gentios que, distinto de outras pessoas, foram particularmente ordenados a crer, mas em demonstrar que quando Deus tomou a iniciativa e ofereceu salvação aos gentios, conforme Seu propósito de chamar um povo para Si mesmo dentre os gentios, eles responderam com fé”[7]
John William traça uma analogia que nos ajuda a entender melhor o caso:
“Notamos o mesmo em todas as nossas congregações nos dias atuais. Dois homens sentam lado a lado sob o som do mesmo sermão evangélico; um está desperto para a importância da vida futura, enquanto o outro está absorto na vida presente. O último irá fazer-se de surdo para a pregação, incorrendo na reprovação de Paulo de julgar-se indigno da vida eterna, enquanto o primeiro crerá na boa mensagem, e se lançará ao trono de misericórdia. É precisamente esta diferença em relação à vida eterna que Lucas aqui indica, e ele a indica porque ela explica o fato que uma classe na audiência de Paulo creu, e a outra não. Ela deixa a responsabilidade para a crença e incredulidade, com suas eternas consequências, sobre o homem, e não sobre Deus”[8]
Com uma perspectiva um pouco diferente, mas ainda dentro dos padrões bíblicos, R. J. Knowling nos apresenta outra forma possível de ver o texto, sem qualquer implicação “calvinista” ali:
“As palavras, na verdade, nada mais são do que um corolário do anagkaion de são Paulo (‘necessário,’ versículo 46): os judeus como nação tinham sido ordenados para a vida eterna – eles tinham rejeitado esta eleição – mas aqueles que creram entre os gentios foram igualmente ordenados por Deus para a vida eterna, e foi de acordo com Sua ordenação divina que os apóstolos se viraram para eles”[9]
Há até mesmo alguns arminianos que creem que Deus predestinou na eternidade aqueles que estariam designados à vida eterna, de acordo com a presciência de atos futuros, e não de forma arbitrária e incondicional.
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Extraído do livro Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook
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[1] John William McGarvey, New Commentary on Acts of Apostles, Vol. 2, pp. 29-33.
[2] Adam Clarke, Comentários sobre At 13.48, Adam Clarke’s Commentary on the Bible.
[3] Richard Watson, An Examination of Certain Passages of Scripture, Supposed to Limit the Extent of Christ’s Redemption, Theological Institutes, Cap.27.
[4] J. R. Lumby, The Cambridge Bible, The Acts of The Apostles, p. 168.
[5] J. O. Buswell, A Systematic Theology of the Christian Religion, v. 2, p. 152-3.
[6] Dean Alford, New Testament for English Readers, Vol. I, parte II, p. 745.
[7] Howard Marshall, Kept by the Power of God, p. 93-94.
[8] John William McGarvey, New Commentary on Acts of Apostles, Vol. 2, pp. 29-33.
[9] R. J. Knowling, The Expositor’s Greek Testament, The Acts, p. 300.