Uma das coisas que sempre digo e repito é que o genuíno Evangelho consiste não no fazer ou no ter, mas antes no ser. E, para mim, o texto acima mostra essa característica de uma forma extremamente interessante, concentrada na seguinte pergunta: “Senhor, quando fizemos isso?”
Pense bem. Quando é que você faria uma pergunta assim? Ora, a resposta é simples: quando alguém mencionar algo que você fez, mas algo tão natural e espontâneo, tão próprio de quem você é, que você nem mesmo se lembra.
Ora, encontramos essa pergunta tanto na resposta dos justos quanto dos injustos; e os justos perguntam a respeito de suas ações, enquanto que os injustos perguntam a respeito de suas “inações”. Ora, isso nos revela algumas coisas interessantes a respeito dos que crêem de fato, e dos que não crêem.
O Evangelho genuíno, vivido, experimentado, revela-se numa vida transformada tão fundamentalmente que o bem e a justiça segundo Deus são coisas naturais para aquele que vive o Evangelho. Isso acontece porque, ao crermos de fato, nos tornamos novas criaturas (2 Co 5:17); e esse novo ser que passamos a ser é criado em Deus, em justiça e santidade (Ef 4:24), para exercer obras de justiça (Ef 2:10). E algo nascido em justiça só pode dar frutos de justiça, tal como uma figueira só pode dar figos (Lc 6:43-49). Curiosamente, o que assim age ignora o que faz — porque não faz tais coisas para “justificar-se” ou “santificar-se”, porque não o faz para “barganhar com Deus”, mas simplesmente como uma expressão de quem é; e ele não as considera para si como justiça própria (senão, porque os justos perguntariam “quando o fizemos”, ao serem informados da recompensa de sua justiça?); antes, o fazer é uma expressão do ser; e, assim, o justo é definido pelo que é; e o que ele é é que define o que ele faz.
Já os injustos fazem a pergunta oposta: “quando não te servimos?” E se o fazem assim, é porque anotam para si seus atos, como se dependendo da “justiça” que há neles. São esses os que dão dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas não vêem a justiça nem a misericórdia na lei que seguem (Mt 23:23); são os que oram alto nas praças falando “Senhor, te dou graças pelo que não sou; mas faço isso, faço aquilo” (Lc 18:10-14), exercendo suas obras na frente de todos, para serem notados (Mt 23:5-7), e guardando cada uma dessas obras como justiça própria — quando, na verdade, são obras vazias de conteúdo ou significado, vaidade de vaidades. São estes também os que dirão “mas, Senhor, em teu nome profetizamos, expulsamos demônios, fizemos milagres”, e aos quais o Senhor dirá “nunca vos conheci” (Mt 7:21-27) — porque o conhecer está, não no que se faz, mas no que se é; tal como a herança (”possuí por herança o reino”, diz Ele aos justos) está ligada ao ser filho. Assim, o injusto tenta definir-se pelo que faz, e tanto tenta que não percebe o que é (ou, antes, o que não é); e não percebe que suas obras de “justiça” não são verdadeiras, porque não procedem do ser; assim, o injusto define-se pelo que faz, para tentar esconder o que não é; e porque não é, não podem proceder dele as verdadeiras obras; assim, o injusto define-se pelo que não é; e o que não é define o que ele não faz.
Eis aí o grande conflito; pois à direita do Cristo estarão os que viveram o Evangelho no que são, que são genuinamente ovelhas, como Aquele que foi levado mudo ao matadouro; e à esquerda, aqueles que viveram a aparência do que não são, que andam em lugares ermos nada carregando senão o próprio pecado; à direita, aqueles que não se arvoram na própria justiça, e à esquerda, os que querem barganhar o céu; à direita, os que são; à esquerda, os que não são.
Curiosamente, no paradoxo cristão, o justo é o que se sabe pecador, para ser reconhecido por Deus como justo na sua dependência do sacrifício de Cristo; o justo é aquele que depende não de suas próprias obras, mas tão somente dos méritos de Cristo, e da vida deste nele próprio — e nisto consegue ser, além da aparência do fazer. O injusto, no mesmo paradoxo, é o que pensa de si mesmo ser justo, tendo como “prova” as obras que exerce, gloriando-se em seus méritos, não nos de Cristo, vivendo a própria vida, não a dEle; e nisso nunca chega a ser, pois jamais sai da aparência do fazer. Assim, é justo o que não se sabe justo, e o que não se faz justo, mas depende do único Justo; e é injusto o que se pensa justo, tentando-se fazer justo.
Finalmente, em que consiste o verdadeiro ser? Em que, senão nAquele que é, que era, que há de vir, tão pleno no ser que se define simplesmente por “Eu Sou”? Se somos filhos dEle, eis a nossa marca: pois se Ele é, nós somos (I Jo 3:1); e se o que Ele faz é consequência do que Ele é, então o que fazemos deve ser consequência do que somos nEle, e do que Ele é em nós.
A expressão maior desse princípio está em um discurso simples de Jesus, que reproduzo abaixo, para terminar esta pequena reflexão — para que continuemos pensando juntos sobre qual será a resposta que daremos, e qual o lado em que estaremos naquele Dia.
“Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós sois as varas. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (João 15:4-5)
Fonte:
http://www.smalltalk.com.br/blogs/biblog/2006/09/04/ovelhas-e-cabritos