Para muitos, a palavra doutrina, de maneira semelhante como ocorreu com a palavra dogma, se tornou um termo pejorativo. Até mesmo muitos evangélicos que afirmam certas doutrinas dão-lhe pouco mais que mínima atenção.
Das muitas objeções a doutrinas cristãs, cinco devem ser examinadas como as mais influentes: doutrinas freqüentemente são consideradas (1) irrelevantes, (2) sem sentido prático, (3) facciosas, (4) não-espirituais e (5) incompreensíveis. À medida em que adequadamente respondemos a essas questões, a importância das doutrinas pode ser melhor demonstrada.
A Relevância da Doutrina
No pensamento popular, doutrinas têm a ver com assuntos insignificantes, irrelevantes para a maioria das pessoas. Apesar disso, a doutrina cristã é extremamente relevante a todas as pessoas. As doutrinas cristãs (i.e., os ensinamentos das Escrituras) apresentam respostas às questões mais fundamentais da vida – questões como “quem é Deus?”, “quem somos nós?” e “por que estamos aqui?” (Sl. 8:3-8; Hb. 11:6). A maneira pela qual respondemos a essas perguntas influencia decisivamente a maneira como vivemos. Ao ignorá-las, vivemos nossas vidas alegremente inconscientes do que é realmente importante.
Doutrinas são particularmente importantes porque, para que possa haver uma proclamação sã do evangelho, é necessário um entendimento correto do que é o evangelho, do que é a salvação, e de como a salvação é recebida (Gl. 1:6-9; 1 Tm. 4:16). Nada menos do que nosso destino eterno depende disso. Não estou com isso sugerindo que, para que possamos ser salvos, todos nós temos que nos tornar teólogos e peritos em todos os pontos doutrinários. Porém, a igreja como um todo tem de exercer grande cuidado ao proclamar o verdadeiro evangelho – e todo cristão tem sua responsabilidade. Terei mais a dizer sobre isso adiante.
É verdade que algumas questões doutrinárias são mais importante do que outras. Uma das funções mais cruciais da teologia cristã (e uma das mais negligenciadas) é separar o importante – e essencial – do menos importante e até mesmo irrelevante (cf. Rm. 14).
Desta maneira a doutrina, considerada propriamente, é muito relevante à vida humana e, portanto, a busca de sã doutrina deve ser o interesse de todos, pelo menos até certo ponto.
A Praticidade da Doutrina
É comum, atualmente, dizer-se que a prática é mais importante que a teoria – que ortopraxia (fazer corretamente) é mais importante que ortodoxia (acreditar corretamente). Mas essa afirmação é em si mesma uma teoria – algo que as pessoas pensam e por isso afirmam, e assim então tentam colocar em prática. O fato é que o que pensamos determina o que fazemos. Desta maneira, doutrina – algo que pensamos – afeta o que fazemos, e por isso tem grande importância prática.
Devemos reconhecer, é claro, que os efeitos práticos das doutrinas têm seus limites. Doutrinas nem sempre ou em si mesmas determinam nossas ações, já que pessoas freqüentemente agem movidas por desejos e interesses contrários às doutrinas que sustentam. Por exemplo, alguém pode acreditar na doutrina de que mentir é errado – e ainda assim estar sujeito a pensamentos egoístas e orgulhosos que tomam precedência sobre suas convicções doutrinárias, e levando essa pessoa a mentir. A praticidade da doutrina encontra-se não em determinar a prática, mas em informá-la – dando-nos o conhecimento pelo qual, com a graça de Deus, podemos agir corretamente.
Devemos, então, considerar tanto o conhecimento quanto a prática como necessários. O mais importante é que a pessoa verdadeiramente viva em obediência e comunhão com Deus, e que experimente seu amor. Nesse sentido, a prática é claramente mais importante do que a doutrina; mas o próprio Deus deixou claro que ele usa a doutrina para desenvolver os objetivos práticos em nossas vidas.
Assim sendo, a importância prática da doutrina cristã é verdadeiramente grande. As doutrinas nos habilitam a desenvolver uma visão realista do mundo e de nós mesmos, sem a qual estamos condenados a uma vida improdutiva (Mt. 22:23-33; Rm. 12:3; 2 Tm. 4:3-4). A doutrina pode nos proteger de falsidades que causam danos à fé ou levam a comportamentos destrutivos (1 Tm. 4:1-6; 2 Tm. 2:18; Tt. 1:11). A doutrina também nos prepara para ministrar a outros (Ef. 4:11-12).
A Unidade da Doutrina
Talvez a crítica mais comum à doutrina é que ela divide as pessoas. E, de fato, doutrinas – tanto na história do cristianismo como de outras religiões – já foram usadas para dividir pessoas de maneiras repreensíveis. Mas num sentido crucial, as doutrinas têm o objetivo de unir as pessoas.
As doutrinas inevitavelmente dividem as pessoas; elas pensam de modo diferente e agem de modo diferente porque têm crenças diferentes. O que é indesejável, entretanto, é que a doutrina divida pessoas que devam estar unidas. A doutrina não deve dividir cristãos fiéis, impossibilitando a sua comunhão. Tampouco deve levar as pessoas a odiar ou maltratar outros que tenham crenças diferentes.
A Bíblia ordena que os cristãos se separem, com base em fatos doutrinários, de falsos mestres ou hereges (Rm. 16:17; 2 Jo. 9-11). Ao fazê-lo, devem estar em unidade na fé (Ef. 4:12-13) contra a heresia. Assim sendo, oposição à heresia pode promover genuína unidade cristã.
À medida em que os cristãos amadurecem no seu entendimento da doutrina bíblica, eles se tornam também mais unidos, porque seus pensamentos se alinham cada vez mais (1 Co. 1:10). Além disso, um entendimento equilibrado da doutrina pode ajudar cristãos divididos por diferenças doutrinárias a se reconciliarem, na medida em que compreendem quais pontos são de menor importância, ou errôneos, e quais são de maior importância (1 Tm. 6:3-5; Tt. 1:9-14). A verdade é que um entendimento superficial da doutrina facilmente promove desunião entre cristãos, enquanto que um conhecimento mais aprofundado da doutrina tende a promover maior unidade cristã.
A Espiritualidade da Doutrina
Ainda que alguns considerem a busca da exatidão doutrinária como intelectualismo carnal, a sã doutrina, é na verdade, muito importante para uma vida espiritual saudável. A doutrina cristã nos ensina sobre Deus, sobre sua vontade e propósitos para nossas vidas, sobre o que somos espiritualmente fora da graça de Deus e sobre como sua graça nos transforma – em resumo, tudo que precisamos saber para que busquemos a espiritualidade verdadeira (Rm. 6:17-18; 1 Tm. 1:5, 10; 2 Tm. 3:16-17). A doutrina nos fornece controles externos e objetivos para experiências internas e subjetivas, de maneira que possamos então separar a espiritualidade verdadeira da fraudulenta, artificial ou até mesmo demoníaca (Cl. 2:22-23; 1 João 4:1-3).
Ao buscarmos um entendimento mais exato da doutrina cristã, estamos cumprindo um aspecto do maior mandamento de Deus: que o amemos com todo o nosso entendimento (Mt. 22:37). Esse mandamento certamente implica que devemos tomar quaisquer providências e exercer todo esforço para que conformemos nossas crenças e convicções à verdade (Rom. 12:2) – e isso requer doutrina.
Para alguns, há uma suposta diferença entre discernimento doutrinário e discernimento espiritual. Em 1 Coríntios, mais de uma vez Paulo faz referência ao discernimento espiritual. O homem espiritual julga todas as coisas, incluindo as coisas do Espírito de Deus, que só podem ser discernidas espiritualmente (1 Co. 2:14-15). Os membros da congregação devem julgar (ou seja, exercer discernimento em relação às) profecias (1 Co. 14:29). Determinados cristãos têm um dom especial de discernimento entre maus espíritos e o Espírito Santo (1 Co. 12:10). Com base nestas e outras passagens, alguns cristãos entendem que esse discernimento nada tem a ver com o exercício do intelecto. Do ponto de vista dessas pessoas, em assuntos doutrinários e práticos se discerne entre o bem e o mal simplesmente ao se ouvir a voz interna do Espírito Santo.
De maneira alguma quero aqui menosprezar o papel do Espírito Santo em conceder discernimento aos cristãos. Com certeza todo cristão deve depender do Espírito Santo para iluminar sua mente, e para que possa claramente ver a diferença entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Muitos cristãos, ainda que sem muitos recursos para um estudo mais aprofundado da doutrina, têm um discernimento excepcional.
Seria um erro, entretanto, colocar discernimento espiritual em contraste ou oposição ao discernimento doutrinário. Em primeiro lugar, a idéia de que o discernimento é puramente espiritual é por si só uma doutrina. Além disso, ao se fazer uma distinção acentuada entre doutrina e espiritualidade, se pressupõe uma dicotomia entre a mente e o espírito humano. Tal suposição, sendo ela mesma uma doutrina, faz com que esse argumento se autocancele. Há também razões bíblicas para se rejeitar a dicotomia da mente e do espírito (as quais não elucidarei aqui).
Além do mais, a Bíblia também ensina aos cristãos a usarem seu conhecimento da doutrina cristã para que possam discernir a verdade do erro, o bem do mal. O exemplo clássico se encontra em 1 Jo. 4:1-3, onde João nos ordena a não dar crédito a qualquer um que afirme estar falando pelo Espírito de Deus, mas a aplicar o teste doutrinário (crer que Jesus Cristo veio em carne – sua humanidade) àqueles que fazem tais afirmações. Da mesma maneira, em 2 Jo. 9 somos advertidos a nos acautelar para não sermos enganados por aqueles que não permanecem na doutrina de Cristo. Em 1 Coríntios, Paulo não somente se refere ao discernimento espiritual, mas também apresenta argumentos doutrinários em resposta à crença herética de que “não há ressurreição dos mortos” (1 Co. 15:12-19).
Ao invés de colocarmos o discernimento espiritual em contraste ou oposição ao discernimento doutrinário, devemos considerá-los como dois lados ou aspectos da mesma atividade. A espiritualidade verdadeira inclui a submissão da mente aos ensinamentos da Bíblia, e a sã doutrina inclui a crença de que nosso conhecimento da verdade depende da iluminação do Espírito Santo. Assim, o verdadeiro discernimento, em sua melhor forma, conduz o cristão a agir de maneira holística, ou seja, integral – utilizando-se do conhecimento dado por Deus na doutrina bíblica, ao mesmo tempo em que é sensível à direção do Espírito Santo.
O Entendimento da Doutrina
Alguns evitam estudar a doutrina cristã porque estão convencidos de que ela é muito difícil e complexa. Ainda que alguns (como crianças pequenas, deficientes mentais e outros) sejam incapazes de entender assuntos doutrinários, a grande maioria das pessoas adultas – jovens e idosos – tem a capacidade de entender muito mais do que procura aprender. Todo indivíduo tem a responsabilidade de adquirir o conhecimento doutrinário permitido por suas capacidades mentais, seu nível educacional, e suas oportunidades.
As Escrituras ordenam todo cristão que aprenda doutrina. Em geral, são os impedimentos espirituais superáveis – e não impedimentos intelectuais insuperáveis – que impedem cristãos de avançarem em seu entendimento doutrinário (Hb. 5:11-14). Cristo deu mestres à igreja para que auxiliem os crentes no aprendizado de doutrina (Ef. 4:11). Obviamente, esses mestres têm de conhecer doutrina a fundo, num nível superior ao da maioria dos cristãos; mas isso é para que possam transmitir o máximo possível da verdade ao resto dos membros do corpo de Cristo.
Alguns aspectos da doutrina cristã são, com certeza, complexos, e causam dificuldades até mesmo a teólogos altamente treinados. Mas isto não deve nos desencorajar de estudar a doutrina cristã; do contrário, seria como se um aluno primário se recusasse a aprender tabuadas porque sabe que há problemas matemáticos tão complexos que causam dificuldades até a matemáticos profissionais.
A sã doutrina é difícil o suficiente para exigir honestidade e disciplina, e ao mesmo tempo fácil o suficiente – com as exceções acima mencionadas – para que todos que busquem a graça de Deus e se comprometam a estudá-la, possam aprendê-la (2 Pe. 3:16-18).
Extraído do livro “MANUAL PRÁTICO DE DISCERNIMENTO E DA DEFESA DA FÉ”, apresentado por Agência de Informações Religiosas (AGIR) e Centers for Apologetics Research (CFAR)