Apologética na história da Igreja

Nas edições anteriores, falamos sobre a apologética nos escritos de Paulo, João e Pedro. Depois, prosseguimos com Justino Mártir, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho. Agora, veremos as contribuições de Anselmo de Cantuária e Tomás de Aquino.

Anselmo (1033-1109)
No século 7o, o cristianismo tinha absorvido a cultura greco-romana e triunfado em sua luta contra o paganismo. A Igreja era a principal expressão da cultura ocidental e seus apologistas concentraram esforços em três direções durante a Idade Média: os judeus não-convertidos, a ameaça islâmica e a fé em busca da compreensão. E foi justamente nesse período que os dois filósofos cristãos em referência (isto é, Anselmo de Cantuária e Tomás de Aquino) se destacaram por suas contribuições com seus trabalhos que, ainda hoje, continuam sendo lidos e debatidos.
Anselmo, arcebispo de Cantuária, foi um dos mais criativos e originais filósofos que a Igreja cristã já concebeu. Ele enfatizava a visão de Agostinho sobre a fé e a razão, que consistia na primazia daquela sobre esta: “Pois eu não procuro entender para crer, mas eu creio para entender”. Apesar de seus argumentos filosóficos serem freqüentemente tratados apenas como provas racionalistas desenvolvidas para convencer ateístas, para Anselmo, no entanto, revelavam a busca pelo entendimento por parte de alguém que já era crente. Por outro lado, é fato que alguns de seus argumentos tinham mesmo a intenção de atuar como evidências para responder aos incrédulos, a fim de confrontá-los com a verdade, como veremos a seguir.
O mais famoso desses argumentos filosóficos ficou conhecido como “argumento ontológico”, um grande suporte para a apologética no período escolástico. A essência desse argumento defende ser inevitável reconhecer a grandeza que envolve o fato de existirmos e a necessidade de um Criador. Partindo da idéia de que “sem um ser superior nada maior pode ser pensado”, Anselmo infere a existência ou ser de Deus.
O argumento tem sido interpretado de muitas maneiras e, às vezes, tem levado a conclusões divergentes. Freqüentemente, tem sido apontado como uma prova racional da existência de Deus e, por causa disso (mas nem sempre), tem sido rejeitado tanto por filósofos cristãos como por incrédulos. Alguns pensadores têm tomado esse argumento para provar que: se existe um Deus, Ele precisa ser um ente necessário, alguém que precisa existir e não poderia simplesmente não existir. Diferentemente, mas nesta mesma linha de raciocínio, um ente cuja existência fosse meramente contingente (ocasional) poderia existir ou não, sem implicações para os demais seres existentes. Ainda outros têm oferecido reinterpretações radicais para esse argumento. Karl Barth, por exemplo, pensava que o argumento queria demonstrar que Deus precisa revelar-se a si mesmo para ser conhecido. Charles Hartshorne reformulou o argumento de Anselmo para provar sua visão teológica processual, segundo a qual Deus não é o maior ente possível, mas está sempre sendo o maior ente possível. Essa diversidade de interpretações certamente desnorteia qualquer pesquisador e prova a genialidade do raciocínio de Anselmo.
A interpretação mais clássica de seu argumento, melhor explicada, seria a seguinte:
1) Percebemos uma hierarquia nos seres, tanto específica quanto genérica, e, para cada ser, deve haver um exemplar, o mais perfeito.
2) Pode-se conceber um ser mais perfeito que todos.
3) Pode-se conceber um ser acima do qual nada se possa imaginar.
4) Esse ser existe necessariamente, pois, se não existisse, não seria o maior, e negá-lo seria negar a hierarquia dos seres.
Outra grande contribuição de Anselmo para a apologética pode ser encontrada em seu livro Cur Deus Homo [Por que Deus se tornou humano?], no qual argumenta que Deus se tornou homem porque apenas Deus, em seu infinito ser, poderia prover uma satisfação (ou compensação) infinita para o pecado humano.
No prefácio à referida obra, Anselmo observa que os mestres da Igreja “discutem as bases da fé cristã não somente para desmascarar a tolice de alguns crentes e quebrantar seus corações, mas, também, para alimentar aqueles que, tendo seus corações limpos pela fé, deleitam-se com os fundamentos racionais dessa mesma fé — um amparo racional que devemos perseguir”.
A primeira parte do referido livro contém respostas de cristãos às objeções de incrédulos que repudiam a fé cristã por ser esta supostamente incompatível com a razão. O livro prova racionalmente que nenhum homem poderia ser salvo sem Jesus Cristo. Nas primeiras páginas, Anselmo explica que o escreveu a pedido de outros crentes. Eles queriam um livro que “não os aproximasse da fé pela razão apenas, mas que fosse capaz também de proporcionar-lhes a compreensão e a contemplação das doutrinas nas quais eles acreditavam, assim como os preparassem para estar prontos, da melhor maneira possível, para dar uma resposta satisfatória a qualquer que lhes perguntassem sobre a razão da esperança que havia neles”. Nesse livro, Anselmo conclui que “os incrédulos procuram a razão porque não crêem, enquanto os crédulos fazem a mesma coisa porque já crêem, e ambos os grupos estão em busca de algo”.
Essas declarações deixam claro que Anselmo não enxergava seu trabalho com um propósito apenas apologético. Antes, foi muito cuidadoso ao negar qualquer intenção de destronar a fé como a base da convicção cristã e esperava oferecer aos seus leitores argumentos racionais que pudessem provar aos incrédulos que a fé cristã tinha uma base racional. Evidentemente, Anselmo via esses argumentos como meios para deixar os incrédulos sem desculpas racionais e, até mesmo, para persuadi-los a aceitar a fé cristã. Contudo, apesar de esses argumentos servirem de ajuda para trazer uma pessoa à fé cristã, para Anselmo, porém, essa fé precisava ser depositada não em argumentos racionais, mas no próprio Cristo.

O raciocínio ontológico de Anselmo de Cantuária

Premissa 1: Existe na mente de todo homem a idéia de um ser a partir do qual não se pode pensar outro maior.
Premissa 2: Existir só na mente é menos perfeito do que existir na mente e também na realidade.
Premissa 3: Se o ser maior do qual não se pode pensar outro só existisse na mente, seria menor do que qualquer outro que também existisse na realidade.
Conclusão: Logo, o ser do qual não se pode pensar outro maior deve existir também na realidade (existência real necessária), logo, conclui-se que existe Deus e esse ser é perfeitíssimo.

Tomás de Aquino
No século 13, a Europa cristã foi abalada com a redescoberta e a difusão dos trabalhos filosóficos de Aristóteles e com o ímpeto dado à visão de mundo aristotélica defendido pelo brilhante filósofo árabe-espanhol Averróis. A crescente influência do pensamento de Averróis nas universidades européias culminou em uma crise entre o pensamento cristão e o pensamento dele. Alguns acadêmicos das universidades começaram a abraçar acriticamente o aristotelismo, enquanto outros, especialmente os ministros da igreja, começaram a condenar qualquer coisa vinda do aristotelismo. Alberto Magno foi um dos primeiros filósofos a se levantar contra esse desafio ao escrever sobre a unidade do pensamento contra Averróis. Mas seu discípulo, Tomás de Aquino (1225-1274), foi quem, de fato, forneceria uma resposta definitiva a esse desafio, de maneira tal que mudaria o curso da filosofia e da apologética cristã.
Tomás de Aquino buscou combater a cosmovisão greco-árabe desenvolvendo uma filosofia cristã por meio da lógica aristotélica. Em sua obra, Suma contra os gentios, apresenta uma apologética direcionada, em primeiro lugar, a Averróis, mas, também, abrindo margem para a compreensão de uma filosofia cristã nos termos aristotélicos. Sua outra obra, Suma teológica, foi um tratado de teologia sistemática voltado a instruir os estudiosos cristãos sobre a teologia e é muito importante, pois contém sólidas incursões na apologética e na teologia da fé.
A dicotomia entre fé e razão assumida por Aquino é freqüentemente contrastada com a de Agostinho, mas, a despeito de suas distinções semânticas e estruturais, as concepções de ambos os pensadores não estão emancipadas.
De acordo com Aquino, algumas verdades sobre Deus são apreensíveis pela razão ou pela fé, porém, outras poderiam ser acessadas somente pela fé. Até mesmo certas verdades apreensíveis pela razão são dependentes da fé em certo sentido, pois a nossa razão é finita, propensa a errar, suscetível ao pecado, e sempre incerta. Por outro lado, a fé é totalmente segura, porque firma-se na revelação do próprio Deus sobre si mesmo.
Aquino ficou muito conhecido devido aos seus cinco argumentos em favor da existência de Deus. Esses argumentos teístas têm sido assunto de inúmeros debates por mais de dois séculos. O próprio Aquino não deu grande ênfase a essas cinco argumentações, que consomem apenas algumas poucas páginas em seus dois tratados. Conforme o pensamento de Aquino, a existência de Deus é, ainda que vagamente, reconhecida por todos os seres humanos. A existência de Deus pode ser inferida pela natureza de um mundo variável, causativo, contingente, graduado e ordenado.
Segundo Aquino, essas evidências mostram que um Deus existe, mas não provam Deus por si mesmas. Para ele, a fé em Deus deve basear-se em sua revelação nas Sagradas Escrituras e não nessas evidências extrínsecas. A princípio, tais evidências não são apresentadas por Aquino como uma refutação ao ateísmo, que, a propósito, sequer era uma corrente expressiva no período escolástico; antes, essas evidências atestam a coerência entre o cristianismo e o aristotelismo.
De maneira muito interessante, Aquino foi um crítico de certas espécies de evidências teístas. Como exemplo, podemos ressaltar que ele rejeitou o argumento ontológico de Anselmo. Aquino deu particular atenção às provas fundadas sobre bases filosóficas contra a eternidade do mundo. Concluiu que a filosofia não poderia provar nem rejeitar a eternidade do mundo e, conseqüentemente, não poderia também provar a existência de Deus a partir do fato da origem (criação) do mundo no tempo. Em vez disso, Aquino salientou que não devemos crer que o mundo é eterno, porque sabemos, por meio da revelação de Deus em suas Sagradas Escrituras, que o mundo foi criado por Ele num dado instante.
Aquino, muitas vezes, empregou as evidências tradicionais do cristianismo seguindo a linha de raciocínio de Agostinho, mas incluiu entre elas a conversão das massas, a fidelidade das profecias e os milagres. Ele foi muito cuidadoso ao apontar, porém, que esses argumentos mostram que o cristianismo é plausível e podem ser usados para refutar várias objeções, mas não são tão eficazes para tornar o cristianismo crível aos incrédulos.
Em resumo, os cinco argumentos que para Tomás de Aquino demonstram a existência de Deus são:
1) O primeiro motor imóvel: o movimento existe, é evidente aos nossos sentidos. Ora, tudo aquilo que se move é movido por outra força, ou motor. Não é lógico que haja um motor, outro e outro, e assim indefinidamente; há de haver uma origem primeira do fenômeno do movimento, um motor que move sem ser movido, que seria Deus.
2) A causa primeira: toda causa é efeito de outra, mas é necessário que haja uma primeira causa não causada, que seria Deus.
3) O ser necessário: todos os seres são finitos e contingentes (“são e deixam de ser”). Se tudo fosse assim, todos os seres deixariam de ser e, em determinado momento, nada existiria. Isto é absurdo; logo, a existência dos seres contingentes implica em um ser necessário, ou Deus.
4) O ser perfeitíssimo: os seres finitos realizam todos determinados graus de perfeição, mas nenhum é a perfeição absoluta; logo, há um ser sumamente perfeito, causa de todas as perfeições, que seria Deus.
5) A inteligência ordenadora: todos os seres tendem para uma finalidade, não em virtude do acaso, mas segundo uma inteligência que os dirige. Logo, há um ser inteligente que ordena a natureza e a encaminha para seu fim; esse ser inteligente seria Deus.
Para finalizarmos, a originalidade do pensamento de Tomás de Aquino evidencia-se em sua concepção de existência, vista como ato supremo e como a perfeição de estar em Deus e, ao mesmo tempo, entre as coisas criadas; na atribuição do ato criativo unicamente a Deus; na negação da existência de matéria nos seres angelicais e, conseqüentemente, na distinção entre Deus e as criaturas, definidas como uma composição de existência e essência. Todas as criaturas teriam o amor a Deus como tendência natural. Na visão de Tomás de Aquino, o teólogo aceita a autoridade e a fé como pontos de partida e procede, então, a conclusões mediante o uso da razão. O filósofo é aquele que se atém à razão. Pela primeira vez, a teologia foi expressamente definida dessa maneira, o que ocasionou um sem-número de oposições, algumas das quais perduram ainda, sobretudo entre religiosos para os quais a razão é sempre vista como intrusa em questões de fé.

Por Kean Boa e Robert Bowman
Tradução de Elvis Brassaroto Aleixo – DF 90

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