Ananias e Safira (Atos 5:1 -11)
Como se fosse preciso restringir o retrato quase perfeito da igreja que se vê em 4:32-37, logo a igreja iria descobrir dolorosamente que o pecado poderia penetrar naquela comunidade. Visto que a história enquadrava-se bem em seu tema, constituindo assunto de seu interesse pessoal, Lucas decidiu mencionar algo que poderia ter sido, talvez, exemplo bem notório e primitivo de pecado relacionado ao fundo monetário comum. Ehrhardt vê essa história de Ananias e Safira como um caso de teste para a questão de se um rico poderia salvar-se — assunto importante para a igreja dos dias de Lucas — e a resposta de Lucas a essa questão (v. 4), que as riquezas em si mesmas não são más, mas constituem dolorosa tentação para o crente (p. 22). Assim é que esta história ilustra o “perigo mortal sempre presente no amor do mundo, que se cria mediante a posse de riquezas” (S. Brown, p. 107).
5:1-2 / Dois membros da comunidade, certo homem chamado Ananias, com Safira, sua mulher (v. 1), conspiraram para enganar seus irmãos e companheiros. À semelhança de Barnabé (4:36s.), venderam um terreno, mas diferentemente deste, retiveram parte dos proventos antes de entregá-los aos apóstolos (veja as notas sobre 4:35). O verbo “reteve” (gr. nosphizein, que ocorre aqui e no v. 3, e novamente no Novo Testamento somente em Tito 2:10), é empregado na LXX, na história de Acã, que “reteve” uma parte do saque de Jericó, que havia sido oferecido a Deus (Josué 7:1). A raridade do emprego dessa palavra no Novo Testamento sugere que Lucas de modo deliberado escolheu-a a partir dessa passagem do Antigo Testamento, a fim de salientar a comparação a seus leitores.
5:3-4 / Pedro tomou conhecimento do que fez aquele casal pelo dom do agudo discernimento. Pedro confrontou Ananias com a mentira. A pergunta: por que encheu Satanás, no grego, (v. 3) implica em que o fato não precisava ter acontecido — que Ananias tinha a capacidade de escolha, que poderia evitar o pecado. A redação encerra uma expressão no v. 4 (lit, “formaste este desígnio em teu coração, uma frase tipicamente hebraica) demonstra que o pecado surgiu após longa e cuidadosa deliberação. Na verdade, a referência ao fato de Satanás haver entrado no controle de seu coração (lit., Satanás havia “enchido seu coração”) pode até sugerir que aquela mentira se tornara uma espécie de obsessão para Ananias. A semelhança de qualquer pecado, esse de Ananias e Safira sensibilizou a Deus mais do que a qualquer outra pessoa: haviam mentido essencialmente ao Espírito Santo (v. 3), isto é, ao próprio Deus (v. 4). A negativa do v. 4 não significa que o casal não havia mentido às pessoas, mas intenciona enfatizar o aspecto mais sério do que os dois fizeram.
Parte da tragédia de seu pecado estava na tolice. Guardando-a não ficava para ti? Pergunta-lhe Pedro. E, vendida, não estava em teu poder? (v. 4). O casal não fora constrangido a vender a propriedade. Ninguém era obrigado a contribuir para o fundo de socorro, menos ainda dar tudo quanto possuísse. Não importava o que era dado, nem quanto era dado, mas o espírito em que a dádiva era feita, e foi nisto que Ananias e Safira erraram. Desejavam parecer mais generosos do que na verdade eram, e ao mesmo tempo ficar numa situação melhor do que aparentemente estavam (será que planejavam agora recorrer ao fundo, como necessitados? ), e talvez não houvessem retido uma grande fatia, visto que a disparidade entre o que estavam oferecendo e a importância (conhecida? ) pela qual haviam vendido o terreno tornar-se-ia aparente demais. Considerando-se bem os fatos, o casal pagou um preço demasiado elevado pela ninharia que esperavam reter e lucrar.
5:5 / Diante da exposição de sua culpa pelo apóstolo Pedro, Ananias caiu e expirou. Sem dúvida alguma, Lucas viu aqui um milagre. Entretanto, é como milagre que o fato apresenta a maior dificuldade para o espírito moderno. É evidente que esse incidente pertence a uma era que não se tinha nenhum conhecimento de causas secundárias, onde se procura explicações sobrenaturais para quaisquer eventos que aturdissem a compreensão lógica. A sugestão de que Ananias teria morrido de choque causado pela descoberta de sua mentira talvez esteja mais perto da verdade. Levando-se ainda em conta que aquela era uma sociedade em que se cria conscientemente que “horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hebreus 10:31), e que, até o momento em que Pedro lhe falou, talvez Ananias não houvesse percebido a hediondez total do que havia feito. Todavia, a narrativa assim como a temos contém todas as marcas de uma tradição primitiva, de uma história relatada com simplicidade, uma crônica de fatos crus, sem a inclusão das razões motivadoras — nada explica a morte de Safira, que Pedro anuncia de antemão. Além do mais, embora possam ter sido os primeiros pecadores, dificilmente teriam sido os únicos a serem levados perante o público; no entanto, o que lhes aconteceu aparentemente foi algo excepcional. É possível, então, que Lucas estivesse certo (como supomos que realmente estava) em ver o sobrenatural nesses eventos — ali estava um milagre de julgamento divino que, não sendo inferior aos milagres de cura, constituiu um sinal de que o reino de Deus havia chegado (veja 4:22; cp. 13:11; Mateus 16:16-19; 18:18; João 20:23). É que o Deus desse reino decidiu julgar o pecado. E Deus o fez na cruz; ele o fará no último dia; e ele o faz agora, entre seu próprio povo. Grande temor caiu sobre todos os que isto ouviram (veja a disc. sobre 2:43). O texto grego seria mais bem traduzido assim: “todos os que estavam ouvindo estas coisas”, visto que a referência aqui parece dirigir-se às pessoas presentes, como sendo diferentes das do v. 11.0 ambiente pode ter sido um “culto” na igreja.
5:6 / Tão logo havia Ananias morrido, levantaram-se os jovens, cobriram o corpo, e, transportando-o para fora, o sepultaram. Não somos informados se houve alguma tentativa de entrar em contato com Safira. E possível que a casa deles ficasse na zona rural, de difícil acesso; seria impossível chegar lá depressa. Ainda assim, parece-nos que houve precipitação no enterro do marido, sem que a esposa soubesse de sua morte. O costume era enterrar os mortos depressa — mas, não tão depressa assim e, em geral, só depois de decorrido algum tempo suficiente para se ter certeza de que a morte ocorrera mesmo. Entretanto, havia exceções à regra segundo a qual se permitia que os cadáveres fossem mantidos insepultos durante algum tempo; no caso presente, se a igreja cresse que a morte fora causada por um ato de julgamento divino, os crentes teriam achado que as formalidades costumeiras poderiam ser dispensadas. Outra explicação seria que naquela época, em Jerusalém, havia uma lei segundo a qual um cadáver não podia ser sepultado no dia seguinte ao da morte. Isto poderia explicar a declaração: e, transportando-o para fora. Se o corpo precisasse ser removido, um túmulo seria um bom lugar onde colocá-lo, tão bom como outro qualquer. Ananias não teria sido sepultado (e o sepultaram), segundo se procede num sepultamento hoje, a terra cobrindo o caixão onde jaz o cadáver, mas este era colocado numa sepultura cavada numa pedra, muitas das quais deste período, têm sido encontradas fora das muralhas de Jerusalém (não, porém, no lado oeste, de onde sopravam os constantes ventos!). Poucos preparativos se exigiam para um enterro dessa natureza, presumindo-se que havia um túmulo disponível. Uma pedra fechava o túmulo. Não há necessidade de interpretarmos a expressão os jovens como uma ordem oficial da igreja, embora a distinção natural entre eles e os anciãos pode ter formado a base para outros ministérios (cp. 1 Timóteo 5:1; Tito 2:1-6; 1 Pedro 5:5; 1 Clemente 1:3; 3:3; 21:6; Policarpo, Filipenses 5.3). Eram apenas “os jovens”. A palavra traduzida por cobriram não é a usual para preparar um cadáver, vestindo-o com roupas apropriadas, talvez porque tais roupas não estivessem disponíveis e não havia tempo para obtê-las. Há outra alternativa: esse verbo poderia ter sido traduzido por “ajuntaram”, ou seja, ajeitaram-lhe braços e pernas para que o cadáver fosse carregado com maior facilidade até a sepultura.
5:7-10 / Cerca de três horas mais tarde — não ficou claro se este cálculo foi feito a partir da morte ou do enterro, mas pode indicar a aproximação da hora de oração — entrou também sua mulher, Safira (v. 7). Não se esclarece onde isto aconteceu. Ficou bem entendido que o horror do pecado, sublinhado pelo que havia acontecido, tomara a mente de Pedro. Portanto, não com falta de caridade, mas cheio do espírito da seriedade da questão, o apóstolo foi direto ao assunto, sem mencionar de imediato a morte de Ananias. Pedro deu a Safira a oportunidade de retraçar seu caminho mentiroso; todavia quando ela persistiu na mentira (ou teria o apóstolo mencionado o valor real da venda, e isto foi a confissão de culpa de Safira? ), Pedro declarou que o casal havia pecado contra o Espírito do Senhor, ao procurar testar se Pedro de fato sabia de todas as coisas (cp. 1:24; 15:10; Êxodo 17:2, 7; Deuteronômio 6:16; Salmo 78:41, 56; etc.) — a pergunta retórica equivale a uma afirmação. Ambos foram condenados, e Pedro anuncia o destino de Safira. Agora Pedro sabe o que acontecerá a ela. Na verdade, esta foi uma sentença de morte que ela ouviu e, de pronto, caiu aos seus pés, e expirou (v. 10). Novamente podemos procurar uma causa secundária, como o choque de ver-se descoberta e sob uma maldição. Entretanto, não se pode excluir a mão de Deus na direção destes fatos. O Senhor havia interferido a fim de esconjurar um perigo que ameaçava a igreja. O cadáver de Safira foi carregado pelos mesmos jovens que haviam sepultado seu marido, ao lado de quem foi colocado. O nome Safira, em grego e em aramaico, foi encontrado num ossuário em Jerusalém, em 1923. E evidente que não existem provas de que se trata dos restos mortais dessa mulher.
Persiste a pergunta: Por que esse casal? Por que esses dois em particular deveriam sofrer a penalidade máxima? Pode ser útil traçar uma analogia entre o que aconteceu a eles, e a penalidade infligida a Nadabe e Abiú, nos primeiros dias do sacerdócio israelita. Aqueles dois haviam-se aproximado de Deus com o espírito errado e por esta razão morreram, pois o Senhor adverte aos que o servem que precisam atentar para a santidade de Deus (Levítico 10:3). Da mesma maneira, Ananias e Safira sofreram as conseqüências de tratar a santidade de Deus com pouco caso (cp. Judas 11). Observe que na história de Nadabe e Abiú, Arão e sua família foram proibidos de chorar a morte daqueles a quem Deus havia punido. É possível que este acontecimento tenha algum relacionamento com a passagem que temos à nossa frente. Nos primeiros dias da igreja, era preciso que se aprendesse a lição de que o pecado entre os santos não é uma questão à toa, destituída de importância. Aqui estava um pecado que Jesus havia condenado com freqüência, pois aquela hipocrisia era da pior espécie. Haviam procurado ganhar excelente reputação de piedade e boas obras mediante fraude. A partir do momento em que esse espírito maléfico estabelece raízes numa comunidade, chega ao fim a verdadeira fraternidade. Então, como é que os homens podem falar a verdade uns com os outros, a menos que haja sinceridade no amor (Romanos 12:9)?
5:11 / A morte de Ananias e Safira produziu profunda impressão tanto na igreja quanto na comunidade ao redor. Precisamos dar às palavras grande temor toda a força que possuem, não importando que a referência a temor fosse uma característica própria das histórias de milagres. Ao encerrar a história, Lucas usa a palavra igreja pela primeira vez em Atos. Quer os próprios cristãos estivessem usando essa palavra nessa época, quer não, Lucas poderia ter objetivado que nós compreendêssemos, mediante tal palavra, que havia uma crescente consciência entre os crentes quanto ao papel que deveriam desempenhar como povo de Deus. Ekklesia, “igreja”, é uma de duas palavras empregadas na LXX para designar a congregação de Israel. Desde que a outra palavra, synagoge, viera a ser empregada mais e mais pelos judeus, tanto para designar suas reuniões como o lugar em que se encontravam, os crentes decidiram descrever-se a si próprios como a ekklesia.
Novo Comentário Bíblico Contemporâneo ATOS, Ed. Vida