A Religião contemporânea numa época de racionalidade e secularização
É difícil falar em Contemporaneidade e secularização sem falar em racionalidade. São conceitos transversais que se complementam e não seria um anacronismo dizer que a racionalidade é um fator causal da secularização.
A era contemporânea se caracteriza entre outros fatores pelo rigor científico que demanda uma racionalidade sistêmica. Essa produção científica na maioria das vezes é usada para fins tecnológicos. Então ciência e tecnologia se misturam e se confundem como conceitos intercambiáveis numa simbiose de intensa racionalidade.
Essa característica da contemporaneidade como sendo secular só foi possível por estar inserida dentro de um processo histórico de rupturas de paradigmas, aonde, por meio da racionalidade, chegou-se ao apogeu da secularização cuja ideologia dominante do racionalismo se expressa mediante o discurso científico.
É lugar-comum em nossa época polarizar e contrapor ciência e religião. Todavia, se a ciência tornou-se o símbolo máximo do racionalismo ocidental foi devido a fatores históricos ligados a religião que possibilitaram essa característica.
O termo secularização é um “Fenômeno histórico dos últimos séculos, pelo qual as crenças e instituições religiosas se converteram em doutrinas filosóficas e instituições leigas” [1].
Peter Berger, após discussão introdutória sobre as ambiguidades que o termo carrega, prefere defini-lo da seguinte maneira: “Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 1985, p. 119).
A secularização se expandiu às diversas áreas antes dominadas pela religião tais como: a educação, o Estado, a literatura, as artes e a própria consciência social e individual.
Há diversos fatores que poderiam ser apresentados como fatores causais para o surgimento da secularização, inclusive o próprio cristianismo via protestantismo calvinista. No entanto, grosso modo, o momento histórico geralmente aceito como o início da secularização encontra-se na transição da idade média à idade moderna por intermédio de dois movimentos que já foram abordados neste trabalho: o renascentista, tendo o humanismo como seu maior expoente e o iluminismo. Uma característica marcante é que ambos romperam com os paradigmas medievais impostos pela igreja católica. No ideário medieval a igreja e a filosofia cristã sistematizada pela escolástica controlavam todos os campos do saber. Portanto, tudo na idade média estava de alguma forma ligado à religião por meio da Igreja (PERRY, 2002).
Estes dois movimentos fizeram florescer pensadores como Galileu Galilei, Nicolau Maquiavel, Isaac Newton, Rene Descarte, Jean-Jacques Rosseau, Adam Smith e outros que por meio de suas ideias contribuíram para que a política, a ciência a economia e a filosofia emancipassem da religião. Maquiavel por exemplo, acreditava que a política não deveria se pautar pela ética cristã, essa lógica foi levada às suas últimas consequências com os positivistas ao separar de vez, Estado e Igreja (Ibidem, 2002).
Com a segunda revolução industrial (século 19) a ciência moderna experimenta um avanço jamais visto neste campo. A classe emergente (burguesia) que detinha o capital para expandir seus negócios apropria-se dela para produzir inovações tecnológicas visando o mercado industrial. O final do século 19, conhecido simultaneamente como belle époque e fin de siécle, inaugura então a era áurea dos homens de sciencia com suas inúmeras invenções tais como a eletricidade e o aço, seguidos pela invenção do automóvel, avião, telégrafo e milhares de outras pequenas novidades (COSTA; SCHWARCZ, 2000).
Não obstante, todas essas revoluções na forma de pensar, cujos eventos históricos produzidos por elas emanciparam a ciência da religião produzindo um mundo racional e secular, só podem ser plenamente entendidas à luz do processo de desencantamento do mundo. Para isso precisamos levar em conta a contribuição da religião judaico-cristã que influenciou a forma de pensar ocidental, servindo como elemento deflagrador para esse processo de racionalização e consequente secularização que perdura até hoje.
Cabe aqui retomar de forma breve a discussão sobre a sociologia da religião de Max Weber já tratada nesta obra. Para Weber o mundo até a chegada do judaísmo estava como em um “jardim encantado”, onde a magia dominava a vida dos indivíduos.
Flávio Pierucci (2003, p. 108), comentando sobre a passagem da magia à religião declara que “Se a religião que assim se transformou em ética religiosa racional agora porta consigo o princípio de uma ruptura radical com a magia, então o judaísmo é a expressão definitiva dessa decisiva ruptura cultural que teve lugar no mundo antigo”.
O processo que começa com a religião de Moisés é intensificado com a pregação ética dos profetas do pré e pós-exílio onde, “A profecia emissária do judaísmo antigo é praticamente sinônimo de desencantamento do mundo como projeto” (Ibidem, p. 109), irá ter seu acabamento final com o protestantismo puritano. É a racionalidade ético-prática encontrada na conduta de vida puritana que, segundo Weber, irá fornecer o instrumento principal para o racionalismo ocidental e a consequente racionalidade científica posterior.
Durkheim em trabalho clássico, embora de um ponto de vista diferente já havia antecipado tal fato ao dizer que “se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é porque a própria religião, no princípio, fazia as vezes de ciência e da filosofia” (DURKHEIM, 1989, p. 37).
Entretanto, ao emancipar-se da religião, a ciência secularizada lançará aquela justamente no lugar de onde saiu – no reino do irracional. O mundo da magia era por dizer um mundo caótico, irracional, sem sentido. A religião ao romper com a magia organizou o mundo por meio de dar um sentido racional ao mesmo, despovoando-o dos deuses. Este mundo, portanto, não era mais fruto do capricho de divindades manipuláveis, mas a expressão da vontade racional de um Deus ético.
Esta nova visão filosófica foi o que permitiu aos primeiros cientistas modernos (muitos deles protestantes) como Isaac Newton, entender o mundo como um sistema mecânico racionalmente projetado com leis fixas ao contrário da visão prevalecente no oriente onde o mundo era visto como uma ilusão, um mundo Matrix. Mas ao progredir para um conceito cada vez mais racional a ciência mediante seus métodos passou a considerar o mundo cada vez mais desprovido de sentido. Portanto, sem intervenção divina, solitário (PIERUCCI, 2003).
Houve, portanto, uma reterritorialização simbólica no campo da razão que via de regra se processou da seguinte forma:
primeiro a religião (monoteísta/ocidental) desalojou a magia e nos entregou o mundo natural ‘desdivinizado’, ou seja, devidamente fechado em sua ‘naturalidade’, dando-lhe, no lugar do encanto mágico que foi exorcizado, um sentido metafísico unificado […] mas depois nos tempos modernos chega a ciência empírico-matemática e por sua vez desaloja essa metafísica religiosa, entregando-nos um mundo ainda mais ‘naturalizado’ […] A ciência, na verdade, obriga a religião a abandonar sua pretensão de nos propor o racional. Assim acuada, ela tem de se conformar a nos oferecer o irracional, melhor, em retirar-se ela mesma no irracional (PIERUCCI, 2003, p. 145).
Entretanto, faz-se necessário explicitar, que se for certo que a ciência empírica tomou o lugar da religião cristã ocidental em proporcionar respostas racionais ao homem sobre a realidade, por outro lado, também é certo, que essa mesma religião continua gerando a racionalidade da conduta de vida. E é esse tipo de racionalidade que interessava a Weber, melhor dizendo, Weber, não quer contrapor ciência e religião (Ibidem, 2003).
Neste ponto cabe bem a advertência de Renato Ortiz quanto à marginalização ideológica da religião:
No entanto, é suficiente estar atento para compreender que o advento da sociedade industrial não implica necessariamente o desaparecimento da religião, mas sim no declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônico de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de sua atuação a limites mais restritos, sem apagá-la enquanto fenômeno social […] O fim do monopólio religioso não coincide portanto com o declínio tout court da religião, sua quebra significa justamente pluralidade, diversidade religiosa, seja do ponto de vista individual seja do coletivo (ORTIZ, 2006, p. 128)
Isto é, não se pode falar do “fim da religião”, mas do fim de sua primazia enquanto instrumento ideológico social. A ciência na era moderna galgou o trono deixado por àquela.
No mundo secular a palavra ciência se tornou uma palavra fetiche. Ser científico é ser racional. Ser cientificamente correto concede certo grau de legitimidade ao discurso e transfere para o imaginário do senso comum certa respeitabilidade. O conselho de Denis Diderot exemplifica muito bem essa visão, “Achamos que o maior serviço a se prestar aos homens é ensiná-los a usar a razão, a somente aceitar como verdade aquilo que verificaram e comprovaram” (PERRY, 2002, p. 296).
Até mesmo a religião que na era científica foi marginalizada à esfera do irracional, quer retomar o status da racionalidade. Inúmeras facções religiosas até mesmo se autonomeiam assim, tentando se livrar do estigma de irracionais no qual foram estereotipadas para cair no pedantismo científico. As próprias nomenclaturas adotadas por algumas delas demonstram explicitamente essa ânsia de estarem atualizadas com o mundo secular. Isto produz em seus adeptos um sentimento de pertencimento ao mundo moderno, portanto, científico. Na era da ciência nasceram também as religiões “científicas”, tais como: “Ciência Cristã”, “Cultura Racional”, “Racionalismo Cristão”, “Cientologia”, por exemplo.
Outro exemplo interessante a ser mencionado aqui sobre essa dependência científica é o espiritismo kardecista. É que ao importar elementos das religiões orientais de cunho mágico, como a crença na manipulação dos espíritos por meio da mediunidade para dentro de um contexto social, cristão e ocidental, Kardec precisou legitimá-los com o rótulo de ciência.
É o que se percebe em quase todas as suas obras nas quais ele tenta justificar cientificamente sua doutrina. A declaração abaixo é um recorte textual extraído do livro O que é o espiritismo, no qual tais ideias vêm a lume.
O espiritismo é, antes de tudo, uma ciência e não cuida de questões dogmáticas. Melhor observado, depois que se generalizou, o espiritismo vem derramar luz sobre um grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, portanto, de uma ciência e não de uma religião (KARDEC, 1985, p. 284).
Enquanto doutrina hindu, dentro de um contexto da sociedade oriental tais elementos não precisariam ser legitimados cientificamente. Mas ao serem transportados para o ocidente e ao entrarem em choque com a visão de mundo ocidental, houve a necessidade do apelo sincrético com a religião cristã. Estas crenças passaram então por um processo de racionalização que culminou com a adaptação ao pensamento científico da época.
Um exemplo dessa adaptação foi a doutrina indiana da reencarnação de procedência hindu chamada metempsicose ou transmigração da alma que apregoava a volta dos espíritos em outros corpos. Todavia, essa mesma doutrina também admitia o retorno de espíritos humanos em corpos de animais, configurando, portanto, uma regressão espiritual. Ao adaptar essa doutrina ao mundo cientificista ocidental, Kardec a reformulou de tal modo que a reencarnação passou a ser sinônimo de progresso, expressa na máxima gravada em seu túmulo: “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sempre tal é a lei”[2]
Este fato expressa muito bem a concepção que Durkheim tinha sobre a relação entre sociedade e religião e a influência daquela sobre esta, na medida em que a religião representa a própria sociedade idealizada (DURKHEIM, 1989, p. 47).
O momento histórico em que Kardec viveu era de fato um momento onde a ciência positivista havia galgado um status de autoridade. Tudo o que não passava pelo crivo científico era relegado ao reino da superstição. Segundo esse pensamento, a sociedade deveria passar por vários estágios progredindo das formas mais primitivas começando pelo estágio teológico, passando pelo metafísico até alcançar o estágio mais avançado – o positivo ou científico.
Portanto, a necessidade de dar à sua religião um status científico tirando-a do reino do irracional, era imprescindível para Kardec. E ele fez isso adaptando a reencarnação à lei positivista do progresso de Auguste Comte.
Este exemplo ressalta o poder de dominação da racionalidade ocidental perante as religiões ocidentais.
Conclusão
A contemporaneidade se caracteriza por uma identidade extremamente racional incorporada por meio do discurso científico. O poder desta ideologia é tão forte que é capaz de subjugar até mesmo instituições que lidam com elementos fortemente simbólicos como é o caso das religiões. Essa racionalidade principiou com uma forma específica de religião, o protestantismo, que construiu um habitus específico nas pessoas moldando definitivamente a cultura ocidental. A consequência final desse processo foi o surgimento do cientificismo.
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Referencias bibliográficas
BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Virando séculos: 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ORTIZ, Renato. Introdução. In: ORTIZ, Renato. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2003.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.
_______. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2006.
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 26ª. ed. São Paulo: Instituto de Difusão Espírita, 1991.
[1] Dicionário Aurélio, versão on-line, “Aurélio Século XXI”.
[2] Esta frase consta na lápide do fundador do espiritismo. Aparece na gravura da segunda página do livro “Obras Póstumas”, 1978.