A primeira peça do quebra-cabeça diz respeito ao livre-arbítrio. Dizer que uma pessoa é livre é a mesma coisa que afirmar que, em face de determinadas circunstâncias, tal pessoa poderia ter agido (o verbo indica passado, de propósito) de maneira diferente daquela como agiu. Ela não teria sido compelida a agir assim por causas internas próprias (estrutura genética ou compulsões irresistíveis), nem externas (outras pessoas, Deus). Embora estejam presentes certas condições causais, as quais na verdade são necessárias a fim de que as pessoas tomem decisões ou ajam, se tais pessoas são livres, essas condições causais não são suficientes para determinar-lhes as decisões e atos. O indivíduo é a condição suficiente para o curso de ação escolhido.
Vamos ilustrar este ponto. Suponhamos que haja uma fatia de bolo de nozes coberto com chocolate, à minha frente. Se sou livre, posso decidir entre comer e não comer o bolo, dadas as circunstâncias causais do momento. É natural que certas condições precisam estar presentes para que haja a possibilidade de eu vir a comer o bolo: o bolo tem de ser de nozes, deve estar aqui, deve ser apetitoso, devo ter uma boca, e assim por diante. Contudo, nos casos em que eu sou livre, embora o bolo de nozes esteja presente, e embora eu goste demais desse bolo, não é sua mera presença, nem minha especial predileção por nozes que causarão minha decisão de comê-lo. Por outro lado, se houvesse algo em minha constituição genética que me tornasse compulsória a ingestão de bolo de nozes, uma compulsão tal que a mera presença de uma fatia desse bolo me levasse a devorá-lo, não importando qual fosse minha deliberação, nesse caso, então, eu não seria livre. De maneira semelhante, se houvesse alguém empurrando o bolo pela minha garganta dentro, ou de outra maneira qualquer, obrigando-me, ou coagindo-me a comer o bolo, eu não seria livre.
Não estou descrevendo, nem advogando uma liberdade radical, em que nossas escolhas são feitas de modo completamente independente de condições causais, ou quando nenhuma restrição é impingida contra nós. Liberdade não significa ausência de influências externas ou internas. É preciso que o bolo esteja presente para que eu possa comê-lo. Ao invés, ser livre significa que as influências causais não determinam minha escolha ou ação. A liberdade é um conceito relativo, segundo nossa experiência: Há vários graus de liberdade. Contudo, quando somos livres, podemos fazer algo diferente daquilo que realmente fazemos, mesmo que seja extremamente difícil fazer essa mudança (como para mim é difícil resistir aos bolos de nozes).
Em segundo lugar, esta perspectiva de livre-arbítrio não significa que nossas escolhas são arbitrárias, nem que os atos que executamos são o produto do acaso. Frequentemente há razões que podem ser apresentadas para explicar nossos atos, as quais variam quanto à lógica e ao apelo de que se revestem, mas, sempre são razões. Podem incluir os objetivos almejados. Por exemplo, a compra de um pão seria uma boa razão para eu ir à padaria. As razões poderiam incluir os gostos e aversões da pessoa. Por exemplo, eu compro uma taça de sorvete de creme russo, porque gosto de creme russo. O fato de eu gostar de determinado tipo de sorvete não foi a causa de eu tê-lo comprado, embora fosse um fator que influenciou minha decisão não apenas de comprar sorvete, mas aquele sabor particular, também. As pessoas livres podem aceitar razões lógicas e racionalmente persuasivas, ou podem rejeitar as razões mais óbvias, para aceitar outras. Seja qual for o caso, a ação ou decisão pode ser explicada. Não é arbitrária pela simples razão de ser tomada livremente.
Há dois tipos de evidências que sustentam o livre-arbítrio humano. Por um lado há a evidência universal, introspectiva. Sentimos que podemos tomar decisões. Eu poderia ter escolhido ir ao clube, hoje, ao invés de trabalhar neste artigo; poderia ter pedido sopa de tomate, ao invés de macarrão, na lanchonete. Entretanto, uma tomada de decisão só faz sentido se pudermos, significativamente, escolher entre duas ou mais opções, se pudermos agir de maneiras diferentes.
O outro tipo de evidência é mais filosófico. As pessoas são essencialmente capazes de desempenhar atos que são certos ou errados (são chamados atos moralmente significativos), e tais pessoas são responsáveis moralmente por seus atos. Contudo, para que as pessoas possam ser responsabilizadas moralmente por suas ações, precisam ser capazes de agir livremente, tomando decisões diferentes. Para que determinada pessoa seja responsabilizada por um roubo, é preciso que tal pessoa tenha tido a possibilidade de não roubar, sob aquelas circunstâncias. Generalizando: se ser livre significa que poderíamos ter agido de maneira diferente daquela como agimos, as pessoas precisam ser livres, então, a fim de poderem agir moralmente. É diferente o caso da pessoa que teve de agir coagida. Nenhuma pessoa é livre se um ato desempenhado por outra pessoa – humana ou divina – empurra-a para pensar, desejar ou agir de determinada maneira.
Verifica-se esta abordagem do comportamento moral em outra esfera. A lei faz distinção entre assassinar uma pessoa (o assassino poderia ter agido de maneira diferente) e matar uma pessoa (quando fatores relevantes, críticos, estavam além do controle da pessoa que mata, como quando um motorista não pode evitar atropelar uma criança que surge correndo à sua frente, saindo dentre carros estacionados). Há também o caso da alegação de insanidade mental, para desculpar pessoas que cometem assassinato. O que se discute não é se a pessoa cometeu ou não o ato. Discute-se se a pessoa o praticou livremente, ou se seu estado psicológico era de tal ordem que não poderia ter feito outra coisa senão matar.
As Escrituras não discutem o livre-arbítrio em si mesmo (embora discutam-no em relação a outros aspectos de nossa vida, como por exemplo, a lei e o pecado). Contudo, elas estão cheias de exemplos de decisões bem estudadas que pressupõem o livre-arbítrio. Na opção de Adão e Eva para obedecer ou não (Gên. 3); na apresentação que Moisés fez de opção semelhante para Israel (por exemplo, Êx. 32 e 33); no famoso discurso final de Josué, concernente ao serviço (Jos. 24); na apresentação que Jesus fez do caminho largo e do caminho estreito (Mat. 7:13,14), há apelos para uma decisão bem ponderada. Além disso, como crentes, nós estamos sob certas obrigações morais, sendo a maior delas amar a Deus acima de tudo, e ao nosso próximo como a nós mesmos. Entretanto, as ordens no sentido de agirmos adequadamente, e as sanções impostas à conduta inadequada, não fazem o mínimo sentido se as pessoas não têm livre-arbítrio. Deus coloca Suas determinações diante de nós; Ele nos criou livres, a fim de aceitá-las ou rejeitá-las.
Fonte: David Basinger e Randall Basinger, Predestinação e Livre-Arbítrio, pp. 130-133