A Queda fez do homem um autômato sem livre-arbítrio?

Um dos pais da Igreja chama a negação ao libre arbítrio de paganismo: Aqueles pagãos que decidiram que o ser humano não tem livre arbítrio, mas dizem que somos governados pelas inevitáveis necessidades do destino, são culpados de impiedade contra o próprio Deus, colocando-o como a causa e o autor dos males humanos. (Metódio, Banquete das Dez Virgens, discurso 8, capítulo 16)

O ensino calvinista exacerba a queda humana e conjectura que o homem morto não pode mais responder ao chamado da Graça de Deus. Para alguns calvinistas, morto, é morto mesmo, em todos os sentidos e não apenas no espiritual – seria uma total incapacidade. Os calvinistas se esquecem de que a reciproca é verdadeira, se o homem está morto desse jeito e não pode responder à salvação, seria, então, obtusidade pensar que ele é culpado pelos seus atos e pecados. Claro, o calvinismo não ensina isso, mas a conclusão é lógica – se é morto para ser salvo – também é morto para ser condenado e culpado pelos seus erros (afinal, morto não erra, por não ter como agir de jeito algum).

Continuando, vejam algumas conjecturas de Calvino: “O homem não tem livre-arbítrio para praticar o bem […]”. Ainda citando Agostinho, ele diz: “que o livre-arbítrio está em cativeiro e não pode fazer bem algum”. (As Institutas, vol. 1, Edição Especial, p. 97-99). A ideia aqui é mostrar que o homem não pode responder ao chamado de Deus, então, somente os predestinados serão ressuscitados e salvos e os demais, condenados ao fogo do inferno: “Deus não criou todos em igual condição, mas ordenou uns para vida eterna e os demais para a condenação eterna […]”. (As Institutas, vol. 3, Edição Especial, p. 41).

A maioria dos cristãos entende que o homem é um ser caído e precisa da Graça de Deus para receber a salvação, mas tocado pela Graça ele pode responder sim ou não ao Salvador. Entretanto, o calvinismo não vê assim. Laurence Vance comenta:

“Quando um calvinista diz Depravação Total, o que ele realmente quer dizer é Incapacidade Total, que não tem nada a ver com a Depravação Total […]. A doutrina calvinista da depravação é despretensiosamente declarada pelos calvinistas como se referindo à incapacidade do homem para livremente crer em Jesus Cristo para a salvação […].” (Laurence Vance, O Outro Lado do Calvinismo, 2000, p. 214)

Norman Geisler diz o seguinte sobre a problemática:

“Ao contrário do que pensam certos calvinistas, a fé não é um dom que Deus oferece somente a alguns. Todos têm a responsabilidade de crer, e quem quer que decida crer pode crer (cf. Jo. 3.16). Jesus diz: ‘Para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna’ (Jo. 3.16). E acrescenta: ‘Quem nele crê não é condenado’ (v. 18). E ainda: ‘Quem vier a mim eu jamais rejeitarei’ (Jo. 6.37). Apocalipse 22.17 também afirma: ‘Quem tiver sede, venha, e quem quiser, beba de graça da água da vida’. Se cada pessoa pode crer, por que, então, Jesus asseverou de alguns: ‘Por esta razão eles não podiam crer, porque, como disse Isaías noutro lugar: Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos nem entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure’ (Jo. 12.39,40)? A resposta é encontrada no contexto: 1) A fé era, obviamente, responsabilidade deles, visto que Deus os havia considerado responsáveis por não crerem, pois somente dois versículos antes, lemos: ‘Mesmo depois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não creram nele’ (Jo. 12.37); 2) Jesus estava falando a judeus de coração endurecido, que haviam visto milagres indiscutíveis (incluindo a ressurreição de Lázaro [Jo. 11]) e que haviam sido muitas vezes chamados a crer antes desse episódio (Jo. 8.26), o que revela que eram capazes de crer; 3) Foi a própria incredulidade teimosa que lhes trouxe cegueira. Jesus havia dito: ‘Eu lhes disse que vocês morrerão em seus pecados. Se vocês não crerem que Eu Sou, de fato morrerão em seus pecados’ (Jo. 8.24). Assim, foi uma cegueira escolhida que poderia ser evitada.” (Em: <www.cacp.app.br>. Acesso em 29 maio 2014).

Sobre o livre-arbítrio, Norman Geisler, no livro “Eleitos, Mas Livres”, assegura que o homem tinha livre-arbítrio antes da queda e após a queda:

Livre-arbítrio antes da Queda

O poder de livre-escolha é parte da humanidade criada à imagem de Deus (Gn. 1.27). Adão e Eva receberam a ordem de: 1) Multiplicar a espécie (Gn. 1.28) e 2) Não comer do fruto proibido (Gn. 2.16,17). Essas duas responsabilidades implicam capacidade de corresponder. Como já foi observado, o fato de que deveriam obedecer a esses mandamentos implicava que poderiam obedecer a eles. O último texto narra a escolha deles: ‘Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar […] tomou do seu fruto, comeu-o e deu a seu marido, que comeu também’ (Gn. 3.6). A condenação de Deus que veio sobre eles torna evidente que eram livres. Deus perguntou: ‘Você comeu do fruto da árvore da qual lhe proibi comer?’ (Gn. 3.11). ‘Que foi que você fez?’. Respondeu a mulher: ‘A serpente me enganou, e eu comi’. (Gn. 3.13). As referências do Novo Testamento ao ato de Adão tornam claro que ele fez uma escolha livre pela qual se tornou responsável. Romanos 5 chama essa escolha de ‘pecado’ (v.16), ‘transgressão’ (v. 15) e ‘desobediência’ (v. 19). O mesmo ato é referido em I Timóteo, capítulo 2, como ‘transgressão’ (v. 14). Todas essas descrições implicam que o ato de Adão foi moralmente livre e culpável.

O livre-arbítrio após a Queda

Mesmo após Adão ter pecado e se tornado espiritualmente ‘morto’ (Gn. 2.17; cf. Ef. 2.1) e pecador ‘por natureza’ (Ef. 2.3), ele não era depravado completamente a ponto de não poder ouvir a voz de Deus ou de dar uma resposta livre. Porque o Senhor Deus chamou o homem, perguntando: ‘Onde está você?’. E ele respondeu: ‘Ouvi teus passos no jardim e fiquei com medo, porque estava nu; por isso me escondi’ (Gn. 3.9,10). A imagem de Deus em Adão foi manchada pela Queda, mas não apagada. Foi desfigurada, mas não destruída. Em outras palavras, a imagem de Deus (que inclui o livre–arbítrio) ainda está nos seres humanos após a Queda. Essa é a razão de o assassínio (Gn. 9.6) e mesmo a maldição (Tg. 3.9) de outras pessoas serem considerados pecados: “Porque a imagem de Deus foi o homem criado” (Gn. 9.6). Mesmo os não-salvos têm livre-escolha, tanto para receber, quanto para rejeitar o dom da salvação que vem de Deus. Jesus assim se refere aos que o rejeitaram: ‘Jerusalém, Jerusalém! […]. Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram’ (Mt. 23.37). E João afirma que, ‘aos que creram em seu nome [Cristo], deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus’ (Jo. 1.12). A verdade é que Deus deseja que todos os não-salvos mudem a maneira de pensar (se arrependam), porque ‘ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento’ (2Pe. 3.9). Isso significa uma mudança de pensamento […]. Jesus disse aos incrédulos de seu tempo: ‘Se vocês não crerem que Eu Sou, de fato morrerão em seus pecados’ (Jo. 8.24). Por vezes declarou que a fé era uma coisa que deviam ter: ‘Nós cremos e sabemos que és o Santo de Deus’ (Jo. 6.69); ‘Quem é ele, Senhor, para que eu nele creia’ (Jo. 9.36); ‘Então o homem disse: Senhor, eu creio, e o adorou’ (Jo. 9.38); ‘Jesus respondeu: Eu já lhes disse, mas vocês não creem (Jo. 10.25). Essa é a razão por que Jesus disse: ‘Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus’ (Jo. 3.18). Claramente, então, a fé é nossa responsabilidade, e ela está enraizada em nossa capacidade de responder. (Norman Geisler, Eleitos, Mas Livres, 2001, p. 35,36)

Além da bíblia, vemos que os pais da igreja rejeitavam tal doutrina. O Concílio de Arles (353 d.C.) disse que “o livre arbítrio permanece após a queda, embora enfraquecido” e o Concílio de Orange (529 d.C.), segundo Roger Olson, condenou o fatalismo predestinacionista.

Extraído do livro “Calvinismo Recalcitrante” – clique aqui e baixe o pdf gratuitamente

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