A perspectiva de missões no ministério de Jesus

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Nos últimos capítulos, confirmamos que o mandato missionário baseia-se no Antigo Testamento, como um fio que entrelaça toda a história de Israel. O escopo de missões sempre foi e sempre será universal, já que procura anunciar e promover o reino de Deus por todo o mundo. Na própria história de Israel, a mão forte e poderosa de Deus se estendeu ao povo, não somente para seu benefício, mas também como testemunho às nações, a fim de levá-las a conhecerem o Senhor dos Exércitos.

No Novo Testamento, essa preocupação universal de Deus intensifica-se a partir do ministério de Jesus. O Evangelho Segundo Lucas, mais que todos os outros, enfatiza o significado universal da vinda de Jesus. Dos quatro evangelhos, apenas Mateus e Lucas traçam a ascendência de Jesus através de sua genealogia. Mateus começa a partir de Abraão a fim de destacar aos leitores judeus e aos gentios, inquisidores da fé judaica, que Jesus, sendo filho de Abraão, é o Rei prometido de Israel. Lucas, entretanto, começa a genealogia de Jesus a partir de Adão, destacando-o como filho do pai de toda a humanidade. Assim, Jesus identifica-se com o plano mestre e universal de Deus na história da criação, ou seja, ter domínio sobre todas as coisas e não somente sobre Israel. Em Lucas vemos Cristo como o missionário de Deus, enquanto em Mateus ele é visto mais como o Messias prometido de Israel.

Lucas enfatiza o significado do ministério de Jesus, tanto em termos geográficos quanto em termos sociais e culturais. Consideremos estes três aspectos de seu ministério.

ROMPENDO AS BARREIRAS GEOGRÁFICAS

Em Lucas 4, Jesus estava em Cafarnaum, onde centralizou seu ministério no início. Foi lá que ele começou a pregar, ensinar e curar com autoridade. Foi até a casa de Simão e curou sua sogra. Nas altas horas da noite, o povo lhe trazia os doentes, e ele os curava, devendo ter ficado um tanto sobrecarregado com este ministério, pois lemos: “Sendo dia, saiu e foi para um lugar deserto; as multidões o procuravam e foram até junto dele, e instavam para que não os deixasse” (Lc 4.42).

Aparentemente, o povo percebia que Jesus estava prestes a deixá-lo, e isto quando ele mal começara seu ministério lá! Imagine a reação das pessoas — angustiadas como se tivessem estado na fila do INPS durante a noite toda e, de repente, o médico de plantão tivesse saído de férias.

“Espere aí! Não diga que já vai! O Senhor apenas começou seu ministério aqui. Esta cidade está cheia de corrupção e pobreza, pecado e doença. O Senhor ainda não pode nos deixar!”

Qual foi a resposta de Jesus?

“É necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado.”

O evangelho deve se espalhar. Não pode ficar parado em lugar algum! Já que o evangelho é do reino, isto tem dimensões as mais amplas e universais possíveis. Fica, portanto, implícita sua divulgação por toda parte, atravessando todas as barreiras geográficas. Tem que estar sempre em movimento, até que todos recebam as boas novas. O ministério de Jesus demonstra uma preocupação missionária que cruza as fronteiras geográficas, convocando a todos em todos os lugares a assumirem a vida do reino.

ROMPENDO AS BARREIRAS SOCIAIS

A missão de Jesus, contudo, não se resumiu a cruzar barreiras geográficas. Jesus também rompeu barreiras sociais, pois ministrou a grupos sociais outrora negligenciados.

Por exemplo, observamos que três vezes Jesus foi à casa de um fariseu para jantar (Lc 7.36; 11.37; 14.1). Ele, portanto, não deixou de ministrar até mesmo à classe religiosa que mais se opunha a ele. Em outra ocasião, uma mulher pecadora ungiu os pés de Jesus com perfume (Lc 7.36-50). Jesus não se preocupava com o estigma social que poderia receber por causa de sua simpatia e disponibilidade para ministrar a todos igualmente, tanto àqueles que deveriam ser seus maiores inimigos quanto aos que poderiam causar o maior escândalo para seu ministério. Aliás, pelo menos segundo Lucas, havia, aparentemente, até uma ênfase — se não preferência — neste tipo de gente, embora Jesus também tenha atendido à alta classe de líderes religiosos. Ele ministrou ao desterrado, ao aflito e ao pecador.

Até os publicamos foram objetos de seu amor e atenção. Eles eram as pessoas mais odiadas pelo povo, consideradas exploradoras, em virtude dos altos impostos que cobravam, e traidoras, por ajudarem a enriquecer o Estado romano. Jesus, apesar deste forte preconceito social, foi jantar na casa de Levi (Lc 5.27-32). Mais ainda, ele se convidou à casa de Zaqueu, outro coletor de impostos (Lc 19.1-10). Dessa forma, Jesus demonstrou concretamente que sua missão implicava em cruzar todas as barreiras sociais, dando atenção especial para os grupos mais rejeitados da sociedade.

Por isso mesmo, Lucas revela enfaticamente o alcance que Jesus teve entre os pobres e oprimidos, desde o princípio de seu ministério: ele veio para evangelizar os pobres, libertar os cativos e oprimidos e restaurar a vista aos cegos (Lc 4.18). Nas bem-aventuranças pregadas na planície, o contraste proposital entre a pobreza e a riqueza exemplifica esta preocupação especial de Jesus com os pobres, famintos, desesperados e oprimidos. Exemplifica-se também nas ilustrações dos dois devedores (Lc 7.41-43; observe a quem Jesus mais ama), do amigo da meia-noite (Lc 11.5-8), do rico e seus celeiros (Lc 12.13-21, veja o último versículo), da moeda perdida (Lc 15.8-10), do administrador esperto (Lc 16.1-13; repare novamente o último versículo) e do juiz iníquo e a viúva (Lc 18.1-8).

Achamos necessário dar duas explicações a esta altura de nossa abordagem do ministério de Jesus. Em primeiro lugar, quando afirmamos sua preocupação com os pobres e oprimidos, não temos por base nem estamos propagando qualquer teologia contemporânea de libertação. Pretendemos apenas obter uma rigorosa, não obstante abreviada, base com interpretação bíblica coe­rente (julgue você mesmo!). Em segundo lugar, bem sabemos que muito se tem falado sobre uma opção preferencial pêlos pobres. Afirmo que a própria evidência bíblica leva a esta conclusão. Se não, Jesus poderia dizer: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os ricos…” ou, ainda mais, “bem-aven-turados os ricos…”, e Paulo poderia descrever a com­posição da igreja coríntia como sendo de “não muitos analfabetos, nem muitos oprimidos, nem muitos de nas­cimento humilde” (l Co 1.26).

Portanto, para o intérprete espiritual, digo que há sim certa preferência bíblica pelo pobre e oprimido. Não é por acaso que nenhum dos textos citados descreve o pobre como alguém que não seja social e economica­mente pobre. Por outro lado, para o intérprete liberacionista em termos apenas sócio-políticos, digo que essa preocupação com o pobre não existe por causa da po­breza em si, mas sempre em relação à justiça e à glória de Deus. O pobre é preferencialmente bem-aventurado porque ele não tem de quem depender para defendê-lo, a não ser o próprio Deus, se deste, de fato, ele depende. Assim, o pobre bem-aventurado é uma pessoa política e economicamente pobre. Mas, é um pobre não só injustiçado pelos homens como também justo diante de Deus. Esta ideia do pobre injustiçado e também justo deriva da palavra áni, no Antigo Testamento, que se traduz tanto como “pobre” quanto como “humilde” e também “pie­doso” (Am 2.6 e Is 2.6-12). Portanto, a postura do pobre dificilmente é conhecida pelo rico, e a sua posição diante de Deus tem preferência pela maior propensão à de­pendência dele, a qual, assim, vai além de dimensões espirituais, emocionais e de relacionamentos, incluindo também as crises cotidianas, financeiras, profissionais e até políticas, crises estas que o rico enfrenta bem menos. Entretanto, quando o rico consegue assumir essa mesma postura (não é este o sentido da exortação ao jovem rico, em Lc 18.18-23?), pode também gozar a bênção de Deus (como no caso da bem-aventurança para o “humilde” ou “pobre de espírito”, em Mt 5.3). Detivemo-nos nessa questão pela necessidade de esclarecimento bíblico e por ser tão pertinente no Brasil, cuja população, em grande parte, é pobre (e cada vez mais, proporcionalmente!).

Decerto ele ministrou também aos ricos, pois, pro­vavelmente, Zaqueu e José de Arimatéia tinham bons recursos financeiros. (Todavia, a forma de dirigirem suas riquezas tinha de mudar diante do compromisso com Jesus!) Assim, reparemos que, se Jesus fez uma opção preferencial pelos pobres, certamente esta opção não era exclusiva. O essencial era um compromisso com o Se­nhor, não deixando isto de ter manifestações concretas na vida de devoção e também nas relações humanas.

Outro grupo desprezado pela sociedade, que re­cebeu a atenção e a preocupação de Jesus, foi o das mulheres. Lucas faz menção desta dimensão do minis­tério de Cristo quarenta e três vezes, enquanto Marcos e Mateus juntos a fazem apenas quarenta e nove vezes. Além disso, Lucas dá ênfase especial ao fato de os primeiros missionários (quem testifica da ressurreição de Jesus) serem todas mulheres (23.55-24.12). Num mundo onde o papel da mulher não possuía prestígio nenhum, este fato é significativo e revelador. Além disso, só Lucas destaca as mulheres que acompanhavam e sustentavam nosso Senhor em sua missão (8.1-3).

A soma destas observações assinala convincente­mente que o ministério de Jesus rompeu barreiras sociais. Sua missão atingiu todos os grupos sociais, espe­cialmente os mais desprezados e oprimidos. Neste sen­tido, tendemos a esquecer o modelo de Jesus e nos acomodar à mobilidade ascendente que nossa fé pro­picia. Não que a ascendência seja negativa, mas apenas a acomodação e injustiças cometidas contra os outros (não é este o sentido da história do Rico e Lázaro? Lc 16.19-31).

Extraído do livro “Missões Bíblicas” – Ed. Vida Nova

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