A Paixão de Cristo

As doze últimas horas de Jesus antes do suplício da cruz 

O filme The Passion of the Christ, em exibição nos cinemas brasileiros desde 19 de março, tem suscitado uma polêmica apaixonada nos meios culturais e religiosos do mundo ocidental. Mel Gibson, o famoso ator e diretor de Hollywood, mais conhecido por sua atuação em filmes de ação, disse ter-se sentido inspirado a fazer The Passion of the Christ depois de passar por uma profunda crise pessoal que o levou de volta à fé de seus primeiros anos. Católico da velha guarda, que não aceita o aggiornamento proposto pelo Concílio Vaticano II, Gibson mandou construir uma capela particular, onde todos os dias são celebradas missas em latim.


Acusação de anti-semitismo 

Muito antes de seu lançamento, o filme foi criticado por ser discriminatório e incitar a violência contra o povo judeu. Entre os detratores, inclusive, muitos que nunca tinham assistido às dezenas, talvez centenas, de previews exibidos antes da estréia oficial. Gibson foi acusado de retratar os judeus como os responsáveis pela morte de Jesus. Seus detratores dizem que esta imagem negativa pode acirrar o sentimento anti-semita latente em muitos indivíduos e levá-los a atos de violência contra os judeus. Alguns chegam até a sugerir que poderia haver uma onda de atos brutais semelhantes aos maus-tratos infringidos aos judeus durante o governo de Adolf Hitler na Alemanha da primeira metade do século 20. O próprio rabino-mor de Israel solicitou ao papa João Paulo II que interviesse por causa da polêmica desatada pelo filme.

Em inúmeras entrevistas, Mel Gibson procurou deixar claro que havia tentado fazer uma descrição das últimas doze horas de vida de Jesus tão fiel ao relato dos evangelhos quanto possível. Esclareceu também que não é anti-semita e que ama o povo judeu. Chegou mesmo a dizer que odiar o povo judeu é contra a sua fé e constituiria em pecado. Sua fé, recobrada após a crise pessoal pela qual passara, foi o motor da iniciativa de contar a história do Salvador. Não se trata, conforme explica, de única narrativa cinematográfica válida sobre a paixão ou sofrimento de Jesus, mas da interpretação da paixão segundo Mel Gibson.

Se o filme tem sido objeto de crítica acirrada por parte de alguns, há outros que saúdam a obra do ator e diretor como sendo, talvez, a mais brilhante encenação do sofrimento de Jesus. Entre esses, muitos líderes evangélicos, que vêem no filme uma excelente ferramenta evangelística. Em muitos lugares dos EUA, especialmente no chamado Cinturão da Bíblia e na Califórnia, membros de igrejas católicas e evangélicas compraram ingressos antecipados para assistir ao filme.

Muitas igrejas alugaram salas de cinema e lotaram-nas com seus membros e convidados, e chegaram até mesmo a fazer apelos, após a exibição, aos não-cristãos, para que aceitassem a Cristo como Salvador. Além de promoverem o filme entre seus adeptos, alguns líderes estão produzindo materiais de estudo bíblico baseados no mesmo. Dessa forma, tentam estimular os fiéis a pensarem no significado da morte de Cristo e, após essa reflexão, serem usados como guias em grupos de evangelização ou em conversas com os interessados em saber mais sobre Jesus. Um líder dos batistas do Sul, a maior denominação protestante dos EUA, chegou até mesmo a saudar o filme como a maior estratégia evangelística desde as cruzadas de Billy Graham.
Sucesso absoluto de bilheteria, a fita alcançou a cifra de mais de 200 milhões de dólares nos doze primeiros dias de exibição. Começa com a oração agonizante de Jesus no Getsêmani e sua traição por Judas e prossegue num crescendo de violência, pontilhado de flashbacks, com Jesus sendo espancado pelos guardas do templo e pelos soldados romanos, a hesitação de Pilatos em condená-lo, o vozerio da turba pedindo sua crucificação e termina com Jesus expirando na cruz, mas não sem uma breve cena indicando a ressurreição. Esta poderia ser o indício de que Gibson talvez pretenda fazer uma seqüência.

Entre o público, as reações têm sido geralmente carregadas de fortes emoções. Num caso extremo, uma mulher de meia-idade morreu de enfarte após assistir à cena da crucificação.

Muitos saem dos cinemas chorando, tocados pelo sofrimento de Jesus, nunca antes mostrado em tal detalhe em filmes de Hollywood, os quais geralmente mostram um Jesus plastificado, impávido diante do padecimento que lhe é imposto por seus algozes. O Jesus de The Passion é um Cristo que se resigna ao sofrimento por entender ser esta a vontade de Deus para sua vida, mas que é suficientemente humano para vergar sob o peso da dor e da humilhação às quais é submetido.

Um filme “católico”

O filme de Mel Gibson bem poderia ser classificado como “católico”, na opinião de Robert Johnston, professor de teologia e cultura do Seminário Teológico Fuller. Ele se concentra na paixão ou sofrimento de Cristo, um tema quase onipresente na literatura católica, especialmente dos místicos. Não há como negar que a flagelação de Cristo é muito mais rememorada do que sua ressurreição, no contexto católico romano. Podemos dizer que essa tendência apresentada em todo o filme é antes retratada de forma incontestável nos ícones católicos, os quais, na sua maioria, demonstram um Cristo infante no colo de sua mãe protetora ou um Cristo agonizando na cruz. São imagens que suscitam sentimento de piedade, pena, compaixão e parecem revelar fragilidade e impotência. Obviamente, isso é um fator influenciador. Há católicos que, em tempos da celebração da Páscoa, “pagam” seus votos por meio de sacrifícios, o que dá a entender que estão querendo tomar sobre si uma partícula do que Cristo sofreu. Em casos extremos, há até aqueles que chegam a “confeccionar” sua própria cruz, carregando-a sobre os ombros e simulando uma espécie de “via-crúcis”.

Diferentemente, os protestantes, em geral, observa Johnston, parecem deixar de lado a paixão e para se concentrarem na ressurreição de Jesus, sua vitória sobre a morte. Biblicamente, não devemos querer construir um “cabo-de-guerra” sobre estas questões. De fato, a Santa Ceia do Senhor é uma ordenança deixada para que os cristãos rememorassem periodicamente o sofrimento de Cristo na cruz, e isso deve ser observado. Mas qual seria o valor do sacrifício de Cristo se Ele não tivesse ressuscitado?

Além da exploração do sacrifício de Cristo e a quase que ausente ressurreição, o filme destaca Maria, a mãe de Jesus, e aspectos da tradição católica romana, como o ato misericordioso de Verônica de enxugar o rosto ensangüentado de Jesus, o que é cogitado pela igreja romana como o véu em que ficou gravada a autêntica imagem do rosto de Jesus. E mais: o diretor, usando de licença artística, criou certos segmentos que não se encontram nem nos evangelhos nem na tradição católica para preencher a narrativa.

Um exemplo foi o uso de uma mulher no papel de Satanás, cujo objetivo é comunicar a idéia de que o mal é atraente. Outro é o uso deliberado das palavras de Jesus fora do seu contexto original. Embora use elementos extrabíblicos, pode-se dizer que o filme não é antibíblico. A reconstrução de época é bem feita e as personagens parecem reais, embora falem com uma entonação artificial, talvez criada pela decisão de manter todos os diálogos em aramaico e latim, acompanhados de legenda. Também surpreende ver Jesus falando em latim com Pilatos, o que provavelmente nunca ocorreu, pois o idioma normalmente utilizado pelos romanos no oriente era o grego.
Sem dúvida, The Passion of the Christ passará para a história não só como um grande sucesso de bilheteria e por ter originado tamanha controvérsia, mas também por provocar perguntas perenes.


Quem matou Jesus?

Uma das controvérsias geradas por The Passion of the Christ está relacionada aos culpados pela morte de Jesus. Mel Gibson está sendo acusado de ter mostrado os judeus como responsáveis pelo ato. Convém lembrar que a Igreja Católica Romana oficialmente manteve, durante muito tempo, que os judeus foram os responsáveis pela execução de Jesus, chamando-os de “povo deicida”. Este estigma só foi removido em 1965, pelo papa João XXIII, na encíclica Nostra Aetate. Sendo um católico pré-conciliar ou tradicionalista, não é difícil entender por que Gibson foi alvo dessas acusações.

Os responsáveis pela morte de Jesus

Num contexto histórico, houve três responsáveis pela morte de Jesus.

Pôncio Pilatos

O primeiro foi, sem dúvida, Pôncio Pilatos, o famigerado procurador ou governador romano da Judéia, entre 26 e 36 d.C. Conhecido por sua hesitação diante das acusações feitas a Jesus por seus inimigos, Pilatos decidiu “lavar as mãos”, ato que se tornou proverbial. “Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo.

Considerai isso” (Mt 27.24). Entretanto, sua responsabilidade pela execução de Jesus não foi em nada diminuída, porque, como representante imperial, era o único que podia ditar a sentença de morte. Além disso, Pilatos estava ciente da inocência de Jesus e sabia que seus inimigos o queriam condenar à morte por motivos políticos.

Os judeus

O segundo responsável foi o grupo de judeus que pediu a Pilatos a execução de Jesus. Embora os inimigos de Jesus não detivessem o poder de matá-lo, eles claramente queriam livrar-se do Salvador. Por causa de sua insistente demanda, primeiramente acusando Jesus de ter quebrado a lei judaica e depois de querer ocupar o lugar de César, no tocante à lealdade do povo, Pilatos finalmente cedeu, ordenando sua crucificação. O sumo sacerdote Caifás, os demais membros da classe sacerdotal e os fariseus, inimigos viscerais de Jesus, foram auxiliados pela turba que, incitada por aqueles, quando conclamada por Pilatos a pronunciar-se sobre o destino de Jesus, gritava: “Crucifica-o”. “Então ele, pela terceira vez, lhes disse: Mas que mal fez este? Não acho nele culpa alguma de morte. Castigá-lo-ei pois, e soltá-lo-ei. Mas eles instavam com grandes gritos, pedindo que fosse crucificado. E os seus gritos, e os dos principais dos sacerdotes, redobravam. Então Pilatos julgou que devia fazer o que eles pediam” (Lc 23.22-24).

A atribuição da responsabilidade aos judeus de modo indiscriminado, entretanto, baseia-se na resposta dada pela multidão presente ao julgamento de Jesus, quando Pilatos tentou se eximir da sua responsabilidade pessoal: “Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos!” (Mt 27.25). Estas palavras têm sido interpretadas por alguns teólogos como se uma maldição divina tivesse vindo sobre o povo judeu por causa de sua rejeição do Messias. Embora não exista nenhuma base nos documentos neotestamentários para sustentar esta hipótese, a suposta maldição divina foi usada como justificativa para a perseguição e massacre dos judeus ao longo dos séculos. Ela foi evocada pelos Pais da igreja, pelos cruzados e pelos nazistas no holocausto como uma justificativa para seu anti-semitismo e o extermínio do povo judeu.

Jesus, o Cristo

Historicamente, o último responsável pela morte de Jesus foi o próprio Jesus. Alguns críticos dizem que Jesus manipulou as profecias messiânicas do Antigo Testamento para fazer parecer que elas se cumpririam nele. Apregoam, por exemplo, que, ao entrar na cidade de Jerusalém montado em um jumento, Jesus estava fazendo parecer que cumpria o que o profeta Zacarias tinha escrito quinhentos anos antes sobre a entrada triunfal do Messias, ou Cristo, na capital israelita (Zc 9.9). Contudo, mesmo se Jesus tivesse forjado o cumprimento dessa profecia e manipulado o povo de Jerusalém, que o recebeu com alegria, tal como profetizara Zacarias, há vários aspectos cercando a morte de Jesus que Ele não poderia ter controlado. Pilatos, por exemplo, não foi manipulado por Jesus. Até o último instante o governador fez o que pôde para livrar Jesus de seus acusadores, sem sucesso. Mas sob a ameaça dos líderes dos judeus de ser denunciado a César, ele cedeu à pressão por medo de pôr em risco sua carreira política.

Tanto os líderes quanto o povo, e também Pilatos, ao pedirem a crucificação de Jesus estavam cumprindo, involuntariamente, várias profecias que indicavam o modo como o Messias iria sofrer nas mãos de seus algozes. O profeta Isaías, no capítulo 53 de seu livro, escrito mais de setecentos anos antes da crucificação de Jesus, previu a morte do Messias, a quem chama de Servo de Javé. Conforme Isaías, o Messias seria traspassado, uma clara indicação do tipo de morte que Ele sofreria. Outros escritores do Antigo Testamento também previram a natureza da morte do Messias. O Salmo 22 oferece uma surpreendente descrição da agonia sofrida por um crucificado. No versículo 16, o salmista declara inequivocamente que as mãos e os pés do Cristo seriam traspassados. Tudo isso é muito surpreendente em vista de que os judeus não praticavam a crucificação. A lei judaica estipulava que os criminosos condenados à morte deveriam ser executados por apedrejamento.

Se Jesus não manipulou as profecias em seu próprio favor, então em que sentido Ele foi responsável por sua própria morte? Os evangelhos dizem repetidamente que Jesus afirmou que daria a sua vida voluntariamente e que ninguém poderia tirá-la se Ele não o desejasse. No evangelho de João, Jesus declara que daria sua vida espontaneamente para tornar a recobrá-la: “Por isto o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai” (Jo 10.17,18).

Depois de comparar-se a um bom pastor que dá a sua vida pelas ovelhas, Jesus indicou que sua morte seria vicária, isto é, uma morte substitutiva, por meio da qual suas “ovelhas”, ou seja, seus seguidores, obteriam a vida eterna: “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Mas o mercenário, e o que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas. Ora, o mercenário foge, porque é mercenário, e não tem cuidado das ovelhas. Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas ovelhas, e das minhas sou conhecido. Assim como o Pai me conhece a mim, também eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10.11-15).

Em muitas outras oportunidades, Jesus advertiu seus discípulos de que iria sofrer e morrer em Jerusalém (Mt 16.2; 17.22-23; 20.17-19; 20.28). Em várias ocasiões, seus inimigos tentaram matá-lo, mas todas as tentativas foram frustradas, até chegar o momento em que Ele se ofereceu voluntariamente.

Mesmo depois de preso, Jesus poderia ter evitado sua morte se tivesse negado as acusações contra Ele. Tanto o sumo sacerdote como Pilatos lhe ofereceram a oportunidade de se livrar, mas, nas duas ocasiões, Ele recusou tal oportunidade, por entender que havia chegado o momento para o qual tinha vindo ao mundo.

Há, porém, outro sentido pelo qual os evangelhos definem os responsáveis pela morte de Jesus. Esse sentido poderia ser chamado de “responsabilidade cósmica”. Ao explicar seu propósito de vida aos discípulos, Jesus declarou que o “Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). Com estas palavras, Jesus esclareceu, como fez em diferentes ocasiões, que o propósito da sua vinda à terra foi efetuar a reconciliação entre Deus e o ser humano, que se havia alienado de seu Criador por intermédio do pecado.

Os evangelhos testemunham que Jesus “veio para o que era seu, mas os seus o rejeitaram. Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem filhos de Deus; a saber: aos que crêem no seu nome” (Jo 1.11,12). Este testemunho está presente em todo o Novo Testamento, especialmente nas epístolas de Paulo, que declara que “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Co 15.3).

Portanto, respondendo à pergunta “Quem matou Jesus?”, num sentido bem real e bíblico, todos os seres humanos foram os responsáveis últimos por sua morte.

Merecem confiança os evangelhos?

Quando se pensa na paixão de Jesus, uma das primeiras perguntas que vêm à mente está relacionada à questão da historicidade de Jesus. Para determinar se Jesus foi, de fato, um personagem histórico, é necessário saber, antes, se os evangelhos, os principais relatos existentes de sua vida, obra, morte e ressurreição, são dignos de confiança. Até o início do século 18, poucos se atreviam a duvidar da autenticidade dos evangelhos, porém, com o advento do racionalismo, alguns teólogos passaram a questionar sua historicidade e a atribuir os aspectos sobrenaturais dos mesmos, como a divindade de Jesus, seus milagres e ressurreição, a mitos desenvolvidos pelos primitivos cristãos, para fornecerem uma aura de revelação divina à sua religião e propagarem com sucesso sua mensagem entre tantas outras superstições. A confiabilidade dos evangelhos, como documentos autênticos, é, portanto, a pedra de toque do cristianismo.

A datação dos evangelhos

Em primeiro lugar, vem a questão envolvendo a época em que os evangelhos foram escritos. Os críticos dos séculos 18 e 20 chegaram a aventar datas extremamente tardias, como, por exemplo, meados do século 2o d.C. Hoje, entretanto, sabe-se, com razoável certeza, que todos os quatro evangelhos foram produzidos no século 1o, enquanto os apóstolos e outras testemunhas oculares dos eventos neles narrados ainda estavam vivos.

Para o evangelho de Marcos, supostamente o primeiro a ter sido escrito, alguns estudiosos atribuem a data de 45 d.C., aproximadamente quinze anos após a morte e ressurreição de Jesus, embora a maioria o date entre 65 e 67 d.C. Dos documentos antigos do Novo Testamento existentes ainda hoje, o mais antigo é o Papiro Rylands 457, datado de cerca do início do século 2o d.C. Contendo trechos do capítulo 18 do evangelho de João, este papiro faz que o manuscrito, saído das mãos do autor, conhecido como autógrafo, seja datado de pelo menos fins do século 1o. Outro papiro, conhecido como P75, também datado do século 2o, contém grande parte dos evangelhos de João e Lucas.

Entretanto, alguns estudiosos concluíram que um fragmento do evangelho de Mateus antecede os dois papiros mencionados, estipulando sua data para 68 d.C., aproximadamente. De qualquer modo, fica estabelecida uma datação para os evangelhos que não excede os limites do século 1o.

O conteúdo dos evangelhos é fidedigno?

Uma questão, ainda mais importante, vinculada à datação, é se os evangelhos são testemunhos autênticos da vida, morte e ressurreição de Jesus. Em outras palavras, podemos aceitar o relato dos evangelhos como verídico?

Quando os evangelhos foram escritos, muitas testemunhas oculares ainda estavam vivas, inclusive a maioria dos inimigos de Jesus. Estas testemunhas poderiam ter agido para corrigir possíveis erros contidos nos evangelhos.
A idéia de que os evangelhos contêm elementos místicos não procede. Isso porque as testemunhas estavam vivas e um mito, geralmente, leva séculos para se desenvolver. Para dar um exemplo: as duas biografias mais antigas de Alexandre, o Grande, datam de mais de quatrocentos anos após sua morte, em 323 a.C. Muito material lendário foi criado acerca de Alexandre, mas somente depois que as duas biografias foram escritas. Ainda hoje, ambas são aceitas como dignas de crédito. Esta comparação serve para mostrar como teria sido praticamente impossível os mitos a respeito de Jesus se desenvolverem em tão pouco tempo.

Os evangelhos foram corrompidos ao longo dos séculos?

Outra acusação feita por alguns críticos é que os evangelhos foram corrompidos ao longo dos séculos. Os evangelhos que temos, portanto, não seriam exatamente iguais aos originais, mas o resultado de alterações feitas por motivos religiosos e políticos. Entretanto, o Novo Testamento é, escancaradamente, o documento mais bem atestado da antiguidade. Existem mais cópias do Novo Testamento do que de qualquer outro documento antigo.

São mais de cinco mil manuscritos em grego e versões antigas em siríaco e outras línguas. A Ilíada de Homero, uma das maiores obras da antiguidade grega, empalidece quando comparada ao Novo Testamento. As cópias mais antigas existentes hoje são dos séculos 2o e 3o d.C. Em geral, estas cópias são aceitas pelos estudiosos como autênticas. Este exemplo serve para realçar a evidência em favor da integridade dos evangelhos.

E o que dizer das variantes nos manuscritos do Novo Testamento?

Este é outro ponto ressaltado para diminuir a confiabilidade dos evangelhos. Por terem sido produzidas em diferentes áreas e sob diferentes circunstâncias, e devido aos erros de ortografia dos copistas, alguns manuscritos contêm diferenças entre si. Bruce Metzger, uma das maiores autoridades em grego neotestamentário da atualidade, afirma que as diferenças não afetam substancialmente nenhuma doutrina cristã. Norman Geisler e William Nix acrescentam: “O Novo Testamento, então, não apenas sobreviveu em maior número de manuscritos que qualquer outro livro da antiguidade, mas sobreviveu em forma mais pura que qualquer outro grande livro – uma forma 99,5% pura”.

O que dizer dos, às vezes, chamados “livros ocultos da Bíblia”, como o Evangelho de Tomás (Tomé)? Esses livros foram escritos nos séculos 2o e 3o d.C. por adeptos do gnosticismo. A reação dos cristãos a este tipo de literatura foi imediata e radical. O gnosticismo foi rechaçado e, com ele, toda sorte de literatura apócrifa, incluindo os falsos evangelhos e outros escritos. Dessa forma, nunca fizeram parte do cânon das escrituras cristãs. A sugestão de que sejam livros “perdidos” não se sustenta diante da evidência histórica, pois, em primeiro lugar, tais obras fantasiosas não foram aceitas pelos cristãos dos primeiros séculos.

O Jesus da história versus o Cristo da fé

Uma questão derivada da anterior é a relação entre o Jesus histórico e o Cristo adorado pelos cristãos. Seriam os mesmos? A historicidade de Jesus é reconhecida universalmente hoje em dia, tanto pelos cristãos como também pelos críticos da fé cristã. Nenhum estudioso sério duvida da existência do carpinteiro de Nazaré. A discussão, entretanto, centra-se na sua identidade. Para alguns críticos, como os do Jesus Seminar, os cristãos teriam alterado a imagem de Jesus, um camponês galileu, atribuindo-lhe uma identidade divina que o próprio Jesus nunca teria reclamado para si. Como um rabino obscuro, e possivelmente um operador de curas, poderia ter-se transformado num objeto de adoração de milhões de pessoas em todo o mundo?
A resposta oferecida pelos críticos baseia-se na mesma premissa utilizada para a questão da confiabilidade dos evangelhos. Cristãos de gerações posteriores teriam criado mitos, por meio dos quais o humilde galileu foi transformado no Filho de Deus, com prerrogativas que só o Deus dos judeus ou, em menor grau, os deuses greco-romanos e das religiões de mistério possuíam. A evidência histórica, entretanto, aponta em outra direção. Antes mesmo de os evangelhos terem sido escritos, a crença em Cristo como Deus já havia-se estabelecido entre os primeiros cristãos.

O apóstolo Paulo iniciou seu ministério no final da década de 40 d.C. e muitas de suas principais epístolas foram escritas na década seguinte. Nestas, Paulo incorporou credos e hinos dos cristãos, seus contemporâneos. Em Filipenses 2.6-11, por exemplo, Paulo fala inequivocamente de Jesus como “existindo em forma de Deus” antes de sua encarnação. Em Colossenses 1.15-20, o apóstolo Paulo chama Jesus de a “imagem do Deus invisível” no seu estado exaltado.

Alguns críticos chegam a acusar Paulo de ter sido um dos responsáveis pela transformação do homem Jesus no Cristo divino. Segundo eles, Paulo teria distorcido o evangelho original de Jesus, convertendo-o de um simples rabino inovador no objeto de devoção de seus discípulos posteriores. Estas acusações, entretanto, não se sustentam quando se leva em conta a totalidade dos ensinos de Paulo a respeito de Jesus. Para o apóstolo, o Cristo divino e exaltado pela ressurreição é o mesmo Jesus histórico que morreu crucificado e foi ressuscitado ao terceiro dia. Em 1Coríntios 15.3-7, Paulo afirma sua crença nos fatos históricos, circundando a morte de Jesus:

“Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo”.

Estes mesmos fatos foram, posteriormente, asseverados nos evangelhos pelas próprias testemunhas oculares da crucificação e ressurreição de Jesus ou por autores ligados a essas testemunhas. É relevante notar que Paulo disse ter recebido a informação concernente à morte e ressurreição de Jesus. Craig Blomberg nota que, se a crucificação se deu em 30 d.C., Paulo deve ter-se convertido ao cristianismo por volta de 32 d.C. e, possivelmente, se encontrou com os apóstolos em Jerusalém pela primeira vez em 32 d.C. Pode-se dizer, então, conclui Blomberg, que a crença na ressurreição de Jesus pode ser datada dentro de dois anos do próprio evento.

Quando comparada às biografias de Alexandre, escritas cerca de quinhentos anos após a sua morte, por exemplo, ou aos mitos criados em relação a personagens famosos da antiguidade, que levaram séculos para ser forjados, a crença na ressurreição tem muito mais apoio histórico, pois foi esposada por testemunhas dos fatos. Estas testemunhas depois a transmitiram a outros, entre os quais Paulo, que, por sua vez, afirmava claramente sua crença na historicidade da ressurreição.

A importância da ressurreição para o cristianismo

Ele ressuscitou! Essa é a diferença abissal que sempre permanecerá entre Cristo e os demais fundadores históricos das religiões. Muitos opositores do cristianismo aventam que não é um ato extraordinário ou inaudito sofrer martírio em prol de uma causa, pois há registros históricos de outros homens que assim fizeram. Entretanto, a diferença está aqui: no túmulo. Jesus não está mais lá! Isso o torna singular. Os evangelhos atestam um Cristo que esteve morto e está vivo, não um Cristo que esteve vivo e está morto. Veja que a diferença de enfoque é franca. Metaforicamente, podemos dizer que o cristianismo foi concebido de uma tumba vazia. Foi esta evidência que levou os discípulos a entregarem suas vidas ao martírio. Eles não morreram por algo que havia sido inventado por eles próprios e que reconheciam não ser verdadeiro, mas por terem vivenciado as circunstâncias que evidenciaram a ressurreição de Cristo. Como diz James Stewart: “O cristianismo é essencialmente uma religião de ressurreição”.
Se ignorarmos a ressurreição de Cristo, o surgimento da igreja será inexplicável. O evento histórico da ressurreição é a coroação dos fatos e motivos que permearam a vida de Jesus entre os homens. Pela narrativa bíblica, entendemos que: assim como somos compelidos a aceitar a veracidade da encarnação, assim também somos em relação à veracidade da ressurreição. O apóstolo Pedro declara a impossibilidade de Jesus não ter ressuscitado no plano divino da redenção: “Ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte, pois não era possível que fosse retido por ela” (At 2.24). Uma vez que Cristo morreu para ressuscitar – “Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos” (Rm 8.34) – reconhece-se uma lacuna indisfarçável, o fator ressurreição, quando nos propomos falar sobre a morte de Cristo.

O uso pedagógico de The Passion

Diante de tanta polêmica gerada pelo filme de Mel Gibson, cabe perguntar se a fita pode servir para algum propósito maior. Muitos dos contendores parecem se esquecer de que o propósito “número um” da indústria cinematográfica é o entretenimento. Mas ao mesmo tempo que diverte, uma película também transmite uma mensagem. Resta saber que mensagem os milhões de espectadores que já assistiram ao filme receberam.
The Passion of the Christ tem sido comparado, em círculos cristãos, a uma produção anterior, realizada pela Cruzada Estudantil para Cristo, intitulada Jesus, que, segundo a própria Cruzada, foi o filme mais visto em toda a história. Inteiramente baseado no evangelho de Lucas, Jesus foi produzido com objetivos claramente evangelísticos e sem fins comerciais. Equipes viajam por todo o mundo, de carro, em lombos de animais e até a pé, arriscando a própria vida para compartilhar a mensagem de Jesus em todos os rincões habitados do planeta.
Embora feito por um diretor de Hollywood, The Passion of the Christ não é um filme cristão, no mesmo sentido que Jesus. Não se baseia exclusivamente nos relatos dos evangelhos nem tem a pretensão declarada de ganhar adeptos para a fé cristã. Contudo, é um testemunho desta fé. No melhor estilo dos épicos da capital do cinema, narra “a maior história já contada”, ou pelo menos parte da mesma. E a parte escolhida é extraída da porção central dos evangelhos, à qual os evangelistas dedicaram comparativamente mais páginas que ao restante da vida e ministério de Jesus. Embora não sejam tão gráficos nem tão detalhados como Mel Gibson ao relatarem o sofrimento de Jesus, os autores dos evangelhos mostram claramente que a encarnação de Cristo cumpriu seu objetivo na crucificação e ressurreição de Jesus.
Tendo em mente que se trata de uma versão da narrativa do evangelho segundo Mel Gibson, limitada pelas perspectivas do diretor, The Passion pode ser utilizado como uma ferramenta para iniciar uma conversa sobre o evangelho e o significado da paixão e morte de Jesus. Apesar das limitações, é um instrumento válido de evangelização para uso de igrejas e grupos paraeclesiásticos, bem como indivíduos que queiram compartilhar sua fé.
As perguntas que o filme provoca devem motivar os cristãos a se prepararem para oportunidades talvez inéditas de responder a todo aquele que lhes pedir a razão da sua fé.

Notas:

i Miguel A. Albanez é consultor e correspondente do ICP nos Estados Unidos, Ph.D. em Estudos Interculturais do Seminário Teológico Fuller e pastor da Primeira Igreja Batista Brasileira de Los Angeles.
ii Johnston, Robert, Experiencing the Passion: A Personal Reflection on Mel Gibson´s New Movie, in The SEMI,
iii March 8-12, 2004. Pasadena: Fuller Theological Seminary, p. 1, 6.
iv Bailey, Mark e Tom Constable, The New Testament Explorer. Nashville: Word Publishing, 1999.
v In Strobel, Lee, The Case for Christ. Grand Rapids: Zondervan, 1998, p. 82-5.
vi Geisler, Norman L. e William E. Nix, A General Introduction to the Bible, Chicago: Moody Press, 1980, p. 361.
vii Quadro extraído do Christian Apologetics and Research Ministry In Strobel, Lee, Op. cit. Grand Rapids: Zondervan, 1998, p.42-3.


Por Miguel A. Albanez

Fonte: Defesa da Fé


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