A necessidade de uma interpretação teológica

A Bíblia Sagrada, principal fundamento da teologia cristã, é de vital importância para os filhos de Deus. Tal assertiva, desde o século primeiro, foi tão firmemente estabelecida que hoje, dificilmente, algum cristão minimamente maduro ousaria contestá-la. Ademais, sabemos que esta importância, atribuída à Bíblia, reside quase exclusivamente em sua mensagem. A despeito das imensuráveis contribuições da revelação bíblica no campo da história, da arqueologia, da antropologia, das ciências da religião e de outros ramos do saber, o principal mérito da Escritura encontra-se em seu discurso salvífico (Rm 15.4).
Quando se fixa esta verdade acerca dos propósitos da revelação escriturística, se estabelece, por consequência, o fato de que uma correta interpretação da Bíblia é tão importante quanto sua mensagem. Afinal, se a principal riqueza da Bíblia consiste na revelação do Deus verdadeiro, a correta interpretação do discurso bíblico proporciona o correto entendimento referente a Deus e, em última análise, nos direciona a um íntegro relacionamento com Ele.
Com essas considerações em mente, adentraremos no tema da hermenêutica: a ciência e a arte da interpretação. E, pela hermenêutica, defenderemos um modelo de interpretação que parece ter sido relegado ao ostracismo: a interpretação teológica das Escrituras.

Pressupostos para a interpretação teológica das Escrituras
O liberalismo teológico e a posição neo-ortodoxa acerca da natureza da Bíblia causaram profundo impacto no campo da hermenêutica. E esse impacto ressoou na prática interpretativa dos exegetas fundamentalistas.
Para contornar os estragos causados pelas opiniões desses grupos sobre como se deveria interpretar as Escrituras, os teólogos ortodoxos aderiram, inflexivelmente e exclusivamente às categorias histórico-gramaticais de interpretação.
De fato, as contribuições dos métodos histórico-gramaticais são reconhecidas e absolutamente necessárias e não poderiam ser ressaltadas o suficiente neste artigo. Até mesmo teólogos que podemos considerar herdeiros do pós-modernismo são capazes de reconhecer a validade de tais métodos.

Todavia, a exclusiva utilização de categorias histórico-gramaticais na interpretação da Escritura reduz dela um aspecto que não deveria ser ignorado: sua unidade fundamental. O fato de que as laudas bíblicas serem compostas, em última análise, por Deus, constituindo-se, portanto, em uma obra essencialmente singular, faz que o labor hermenêutico, referente a essa mesma obra, deva contemplar técnicas que respeitem sua natureza. Louis Berkhof diz que a “Escritura contém muita coisa que não encontra explicações na história nem nos autores secundários, mas tão-somente em Deus, como o Auctor primarius”.
Dessa forma, o fato de a Bíblia existir como uma unidade, composta por um só autor, nos constrange a considerar determinadas qualidades em sua interpretação, qualidades que não podem ser explicadas por nenhuma outra abordagem na tarefa interpretativa. Como nos diz Berkhof: “As considerações puramente psicológicas e históricas não explicarão os seguintes fatos: que a Bíblia é a Palavra de Deus; que ela constitui um todo orgânico, do qual cada livro individual é uma parte integral; que o Antigo e o Novo Testamentos estão relacionados um com o outro como tipo e antítipo, profecia e cumprimento, embrião e desenvolvimento perfeito; e que não só as declarações da Bíblia, mas também o que pode ser deduzido a partir dela pela lógica, constitui a Palavra de Deus”.
Portanto, a unidade fundamental da Escritura representa um vigoroso argumento para a utilização de categorias teológicas em sua interpretação. No entanto, em que consistem essas categorias?

Os elementos da interpretação teológica
Alguns elementos perfazem, em termos conceituais, o conjunto de ferramentas utilizadas na interpretação teológica da Bíblia. Dois deles, talvez os mais importantes, são a analogia das Escrituras e a analogia da fé.
A analogia das Escrituras consiste em uma ferramenta hermenêutica por meio da qual consideramos os textos a serem interpretados à luz do conjunto canônico anterior a eles, visando analisá-los sob perspectivas teológicas.
W. C. Kaiser Jr. e Moisés Silva, citando as considerações de Bright, autor do The Authority of the Old Testament [A autoridade do Antigo Testamento], dizem: “Foi John Bright quem observou que a maioria das passagens bíblicas possui algum aspecto teológico expressado de maneira que transforma a passagem em uma parte do tecido da Bíblia como um todo. E, ilustrando quais seriam as expressões desse ‘aspecto teológico’, mencionam as indicações de uma teologia anterior dentro do texto, como ‘o uso de certos termos que já adquiriram um significado especial dentro das Escrituras’ (e.g., servo, semente, Israel, etc), além do ‘uso de citações de escritores que precederam o texto examinado’”. Outras expressões do citado aspecto teológico são trazidas também por Kaiser e Silva.
Portanto, a utilização do conceito de analogia das Escrituras nos permite, em coerência com o pressuposto da unidade fundamental da Bíblia, considerar cada texto a ser interpretado em relação intrínseca com o conteúdo escriturístico anterior a ele.
Contudo, embora o uso da analogia das Escrituras constitua-se em uma grande ferramenta para a interpretação teológica da Bíblia, ele — somente — não esgota as premissas por trás da analogia da fé, que considera não apenas o montante canônico anterior ao texto, mas a totalidade do cânon.
Com efeito, a analogia da fé representa, assim, a maior ferramenta teológica da tarefa hermenêutica. O conceito de analogia da fé, analisando-o em suas origens, vem da sentença de Romanos 12.6: “Tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da [nossa] fé”.
A despeito dos diferentes pontos de vista comumente estabelecidos na interpretação deste versículo, a expressão de sentido defendia por nós é a de que Paulo, apesar de ignorar as técnicas hermenêuticas disponíveis no século 21, estava simplesmente se referindo ao princípio de “comparar as Escrituras com as Escrituras”.
Dessa maneira, a própria Bíblia nos fornece o princípio pelo qual se justifica a necessidade de uma abordagem teológica em sua interpretação: se toda a Bíblia é a Palavra de Deus, e não apenas alguns livros ou passagens, é justo que, ao nos lançarmos na exegese de determinada perícope, a consideremos à luz da totalidade da revelação bíblica e não somente do conteúdo escriturístico anterior a ela. É necessário considerarmos, na exegese de cada passagem, o cânon definitivo das Escrituras.
Convencidos da importância de uma interpretação teológica das Escrituras, devemos, neste ponto, nos perguntar quais as consequências do uso da analogia da fé para nossa teologia.

Consequências da interpretação teológica
Diante do princípio da analogia da fé, pelo qual supomos uma única Mente governante como autora sobre a Escritura, alguns resultados devem ser considerados. Um desses resultados é o fato de que a Escritura possui, em muitas de suas partes, um sentido místico.
Berkhof nos explica que “certas partes da Escritura têm um sentido místico que, neste caso, não constitui num segundo sentido, mas no sentido real da Palavra de Deus”. Obviamente, portanto, existe aqui uma dicotomia entre a consideração de um sentido místico, como único sentido para determinadas passagens bíblicas, e a medieval interpretação quádrupla, que enxergava quatro sentidos simultâneos em toda a Escritura.

Por Paulo Ribeiro – DF 100

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