“Em relação à questão da cronologia, o grande problema é que só uma fração ínfima das Testemunhas de Jeová tem condições de checar se as coisas são realmente como a Torre de Vigia alega. Na realidade, a grande maioria não se apercebe de quanto a data 1914 significa. Não tem dimensão de quanto isso pode mudar suas vidas. Para exemplificar: a data 1914 afeta, para uma Testemunha de Jeová que está num leito hospitalar, a decisão de ela aceitar uma transfusão de sangue ou não. Literalmente, é uma questão de vida ou morte!”
A declaração acima foi feita por um dos responsáveis pelo site Mentes Bereanas numa comunicação particular.
Mas, não é um exagero afirmar que ensinos sobre cronologia são “literalmente uma questão de vida ou morte”? Por que este responsável pelo site disse estas palavras? Para entendermos isso, é essencial — antes de qualquer outra coisa — observar como esses ensinos sobre datas são apresentados.
Um dos historiadores que foram citados de maneira deturpada na revista A Sentinela de 1º de novembro de 2011 fez alguns comentários adicionais, que são apresentados aqui em complemento à análise do trecho do livro dele, que foi feita na Parte 3. Explicando o porquê de não estar disposto a escrever algo para questionar esses artigos sobre cronologia nos quais foi citado, ele disse:
“Em primeiro lugar, isso é muito trabalhoso, muito embora a evidência [favorável à data 587 AEC e contrária a 607 AEC] seja sobrepujante… Em segundo lugar, não se pode convencer estas pessoas. [Elas] não têm contra-argumentos, mas esse tipo de pseudo-historiadores jamais admitirá isso.”
“607 é a cronologia de Deus. Como se pode lutar contra isso?” [10] (O grifo é nosso)
Se, de acordo com as palavras deste historiador, a evidência a favor de 587 AEC é “sobrepujante” e ninguém tem contra-argumentos capazes de derrubá-la, então como se explica que a liderança da Torre de Vigia possa convencer tanta gente de que essa é a data errada da destruição de Jerusalém e 607 AEC é que é a data correta? Como eles conseguem fazer isso? Este mesmo erudito definiu isso com precisão, numa simples frase:
Infelizmente, em se tratando de diversos ensinos da Torre de Vigia, o método sempre foi esse. Por exemplo, muitos de nossos leitores conhecem a famosa declaração que apareceu na revista A Torre de Vigia de Sião de 15 de julho de 1894. Referindo-se a algumas datas que a organização defendia na época, a revista dizia na página 1677 (das reimpressões):
Tradução:
“Não vemos qualquer razão para mudar os números — nem poderíamos mudá-los se quiséssemos. Eles são, como cremos, datas de Deus, não nossas. Mas tenham em mente que o fim de 1914 não é a data do início, e sim do fim do período de tribulação.” (o grifo é nosso)
Alguns poderiam argumentar que esta ideia é muito antiga e os líderes da Torre de Vigia não fariam mais esse tipo de afirmação arrojada em suas publicações hoje em dia. Mas a evidência indica o contrário. No caso destes mesmos artigos da revista A Sentinela de outubro e novembro de 2011, consideremos as declarações taxativas que foram feitas em relação à data de 607 AEC (os destaques com letra maiúscula são nossos):
Será que todos os qualificativos grifados acima não significam nada? Afirmar que a data 607 AEC é “exatamente”, “fortemente” ou “claramente” ensinada na Bíblia não equivale a dizer que ela é uma “data de Deus”? Poderia algo ser ensinado “claramente” na Bíblia sem ter sido sancionado pelo próprio Deus?
De modo que não foi o caso de o erudito citado ter ‘lido mais do que está escrito’, ao chamar o ano 607 AEC de “cronologia de Deus”. A leitura que ele fez dos artigos de A Sentinela o levou a esta conclusão porque é exatamente assim que o assunto é apresentado na revista. É dessa maneira que todas as Testemunhas de Jeová no mundo devem entender esses artigos. Mesmo que existam milhares de evidências históricas a favor de 587 AEC, e mesmo que a própria Bíblia esteja de acordo com ela, as pessoas devem rejeitá-la assim mesmo, já que “Deus” disse que ela está errada e a data 607 AEC é que é a correta. Quantos associados da Torre de Vigia ousariam questionar uma “data de Deus”, “claramente apontada” nas Escrituras?
A questão que precisa ser respondida agora é: Se a própria Bíblia não dá base alguma para a ideia de Jerusalém ter sido destruída em 607 AEC, se não é possível encontrar evidência disso na documentação histórica, e se nenhum erudito imparcial endossa esta data (como foi admitido nos próprios artigos), então por que ela é defendida na revista A Sentinela? Se a liderança da Torre de Vigia há muito tempo está a par da enorme quantidade de evidências contra esse ensino, por que simplesmente não aceita essas evidências e continua dedicando espaço em suas publicações para impor a data 607 AEC com tanta força e insistência, chegando ao ponto de invocar o apoio de Deus para ela?
607 AEC – A Base duma Autoridade Religiosa
A resposta direta à pergunta acima é: Não é só uma questão de defender uma data cronológica. Há muito mais coisas em jogo.
Via de regra, as instituições religiosas possuem uma estrutura de autoridade hierárquica. Uma vez que não se pode encontrar apoio bíblico para a ideia de hierarquia humana entre os cristãos, como é que os líderes das organizações procedem para legitimar sua autoridade sobre os grupos que estão sob o seu comando? A única maneira de fazer isso é recorrendo a idéias extra-bíblicas – apresentadas à comunidade como se fossem bíblicas. O que varia é apenas o discurso. Enquanto algumas lideranças religiosas se apresentam como “sucessoras” diretas da “autoridade apostólica” do primeiro século, outras afirmam ser as verdadeiras “restauradoras” do cristianismo primitivo.
Com esse mesmo objetivo de legitimar sua autoridade, a Torre de Vigia apresenta uma curiosa mistura dessas duas idéias. Entre os seus ensinos principais encontra-se a ideia dum “escravo fiel e discreto”. Eles ensinam que esta expressão bíblica aplica-se – e sempre se aplicou – apenas a um pequeno grupo específico de cristãos, que existia no primeiro século da Era Cristã, existiu ao longo dos séculos e existe hoje. Este grupo seria o encarregado de liderar espiritualmente todos os demais cristãos na terra em todos os séculos. Embora eles não saibam dizer quem constituía esse grupo durante a maior parte da história do cristianismo, o fato é que hoje a expressão é aplicada aos líderes da Torre de Vigia – e unicamente a eles.
Mas, que base eles têm para dizer que essa autoridade se aplica unicamente a eles e não a alguma outra liderança cristã? Fazem isso por afirmar que Jesus Cristo assumiu o poder como rei celestial no ano de 1914 e pouco depois ele próprio os nomeou como seu “canal” ou representante exclusivo na terra.
E de onde vem essa data de 1914? Ela é o resultado dum cálculo cronológico, uma soma simples de um período de 2.520 anos, contados a partir do ano 607 AEC – que é apresentado como o ano final da soberania judaica (considerada como a expressão do reino de Deus na terra naquela época).
O esquema apresentado a seguir permite uma visualização gráfica de tudo o que a organização ensina em conexão com essas datas, a saber, os “blocos” do “edifício”, sendo a “pedra fundamental” o ano defendido pela Torre de Vigia para a destruição da antiga Jerusalém – 607 AEC:
Se alguém examinar atentamente todo esse conjunto de ensinos, não será difícil entender que quando a liderança desta organização defende a ideia de a antiga Jerusalém ter sido destruída em 607 AEC, não é só uma simples data histórica que está sendo defendida. Se fosse só isso, essa data já poderia ter sido descartada há muito tempo e esses líderes religiosos poderiam reconhecer a data histórica (587 AEC) facilmente.
Não, embora esses artigos da Sentinela nunca admitam, o que a organização Torre de Vigia está realmente defendendo, nestas publicações e em muitas outras, é a sua própria estrutura de autoridade, que foi construída ao longo de mais de um século. Abandonar esta data agora seria destruir a pedra fundamental do “edifício” doutrinal que sustenta a autoridade desta liderança religiosa sobre milhões de cristãos na terra. Todo o “edifício” desmoronaria! Os líderes da Torre de Vigia sabem que se aceitarem a evidência histórica, serão obrigados a abandonar essa data e procurar imediatamente outra base para sua autoridade. É isso, então, que os leva a gastarem muitas páginas em suas publicações no esforço para defendê-la, mesmo indo contra todas as evidências.
Todo aquele que aceita este conjunto de ensinos, inclusive esta “data fundamental” de 607 AEC, coloca-se automaticamente sob a autoridade desta liderança religiosa específica. Não há dúvida de que isso pode ter um tremendo impacto sobre a vida dessa pessoa. No caso dos seguidores da Torre de Vigia, isso afeta profundamente a maneira como a pessoa conduzirá sua vida cristã, como ela encarará as outras pessoas, como usará o seu tempo de vida e recursos, e até mesmo decisões pessoais, tais como com quem se casará, ou se aceitará ou recusará algum tratamento de saúde (conforme mencionado pelo responsável no início desta parte).
Por outro lado, quem rejeita esta data e todos os cálculos e ensinos associados a ela (ou qualquer outro ensino extra-bíblico que seja usado por qualquer outra liderança religiosa como base para sua autoridade) não verá motivo algum para se deixar influenciar por ditames estabelecidos por outros homens.
De modo que a questão aqui não é saber em que ano a antiga Jerusalém foi destruída. Qualquer pessoa que estudar o assunto de maneira imparcial terá isso bem definido, do ponto de vista bíblico e histórico. Conforme já dissemos na Introdução a este folheto, para a fé cristã não faz diferença alguma saber qual é a data correta. As verdadeiras questões (que são do interesse não só dos associados à Torre de Vigia, como também de qualquer cristão associado a qualquer outra liderança religiosa) são as seguintes:
|
|
Se uma discussão que é só aparentemente técnica pode ter tanto impacto assim na vida de tanta gente, é claro que todos têm direito de conhecer ambos os lados dela. Esperamos que toda a informação suprida neste folheto tenha dado pelo menos uma pequena contribuição para isso. Que todos os que o lerem tenham mais condições de tomarem decisões em relação a este assunto com mais conhecimento de causa. Esse conhecimento é realmente libertador!
__________________
NOTAS:
[10] Estas declarações são de R. J. Van Der Spek, numa comunicação particular de 25 de outubro de 2011.
[11] Como um exemplo gráfico da existência de “intermediários” dentro do modelo de autoridade estabelecido pela Torre de Vigia, citamos aqui o Nosso Ministério do Reino de maio de 1986, págs. 7, 8: “Discípulo é aquele que aceita e promove os ensinos de outro. Portanto, os batizandos precisam não só ter adquirido um conhecimento básico da verdade da Bíblia, mas já devem estar demonstrando pelo seu proceder na vida que compreendem as normas justas de Jeová e se harmonizam com elas. Além disso, quais discípulos de Jesus Cristo, reconhecem a organização visível de Jeová e a autoridade de Jesus Cristo exercida por meio do “escravo fiel e discreto”.
Extraído do site mentesbereanas.info/607ou587_parte5.html em 06/05/2020