A importância da hermenêutica

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Hermenêutica é uma disciplina presente em algumas áreas das humanas, tais como: filosofia, direito e teologia. Entretanto, essa disciplina aparece em nosso cotidiano desde quando nascemos e sua aprendizagem se dá de forma assistemática. Por exemplo, a falha em compreender o piscar dos olhos de alguém poderia significar um desastre em certas circunstâncias. Cada piscar de olhos possui um significado básico em si e está repleto de diversos códigos de sentido. Essa explicação da piscadela é um exemplo dado pelo antropólogo Clifford Geertz em sua obra “A interpretação das culturas” de 1973, onde ele trabalha a noção de uma antropologia hermenêutica para entender a cultura.

Também a linguística demonstra que a linguagem humana, por sua própria natureza, é grandemente equívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma forma. As palavras possuem suas polissemias que dependendo da ocasião, seu significado real só será entendido dentro do contexto em que ela se apresenta. Por exemplo, a frase: “pegue a manga”, só seria plenamente compreensível a partir do contexto da conversa, já que o substantivo é polissêmico e comporta tanto o significado de uma peça de vestuário como uma fruta.

Devido a esta necessidade de compreensão de sentido é que possivelmente sua etimologia está associada a Hermes, deus mediador, patrono da comunicação e do entendimento humano cuja função era tornar inteligível aos homens, a mensagem dos deuses. A ele os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita.

Do grego hermenêutike, que por sua vez, se deriva do verbo hermeneuo (interpretar), hermenêutica é, pois, a ciência que nos ensina os princípios, as leis e os métodos de interpretação.

Mas se por um lado é ciência, por outro é também uma arte. A arte de saber interpretar a subjetividade por trás das palavras e ideias.

Mas por que precisamos de hermenêutica? Por que tal disciplina deveria ser necessária? Afinal, nunca tivemos aula sobre como interpretar o jornal.

O alvo da hermenêutica é chegar ao sentido original pretendido pelo escritor, seja ele sagrado ou não, o sentido claro e exato do texto.  Para chegar-se a isso é necessário, entretanto, vencer os naturais obstáculos pessoais, históricos, culturais e linguísticos que nos é imposto. Aqui, portanto, já estamos falando da disciplina formal que apresenta princípios e técnicas de interpretação.

Desta perspectiva desde a Renascença, há uma hermenêutica teológica (sacra), uma hermenêutica filosófica (profana), como também uma hermenêutica jurídica.

Dentro da hermenêutica teológica há várias escolas de interpretação. No tempo de Cristo, a exegese judaica do judaísmo pós-exílio podia classificar-se em quatro tipos principais: literal, midráshica, pesher e alegóricaFaziam distinção entre o mero sentido literal da Bíblia, tecnicamente chamado Peshat e sua exposição exegética – a Midrash.

Na Igreja Cristã primitiva havia duas correntes de interpretação; a alegórica cuja maior expoente era a tradição de Alexandria e a literal representada pela igreja de Antioquia.

Na idade média aos poucos, foi se desenvolvendo a noção de que a Bíblia tinha um sentido quádruplo: literal (ou histórico), alegórico (cristológico ou eclesiológico), moral e anagógico (ou escatológico) – a chamada quadrica. Era geralmente aceito que a interpretação da Bíblia tinha de adaptar-se a tradição e a doutrina da Igreja.

O Renascimento foi a volta à antiguidade clássica por meio da descoberta da  filosofia e da arte greco-romana. Na literatura bíblica o Renascimento trouxe, entre outras coisas, uma volta às fontes: o Antigo Testamento hebraico e o Novo Testamento grego. Influenciada pelas ideias renascentistas a Reforma representou uma alteração fundamental no pensamento hermenêutico ao delinear o método histórico-gramatical que é utilizado até hoje, cujos princípios destacamos, dentre outros, os seguintes: a Escritura interpreta a si mesma; deve-se levar em consideração o sentido do autor e o entendimento gramatical deve preceder o teológico.

Percebemos, portanto, que dependendo da época histórica em que a Igreja se encontra a hermenêutica vai tomando alguns contornos mais ou menos fixos ao se amoldurar com o pensamento cultural.

Mas qual seria a importância da hermenêutica para uma boa interpretação exegética em meio às mudanças em nossa sociedade contemporânea?

Para responder a essa pergunta temos de nos voltar para a cultura. Podemos dizer que a cultura é uma lente através da qual o homem vê o mundo – pessoas de culturas diferentes usam lentes diferentes e, portanto, têm visões distintas das coisas. As pessoas percebem o mundo de maneiras diferentes porque constroem pressupostos diferentes da realidade. Estes pressupostos são chamados de cosmovisão.

Para isso há uma necessidade de o intérprete não só extrair o que o autor do texto pretendia dizer para seus leitores da época, mas como ele pode falar ainda hoje para nós. A hermenêutica, portanto, tem uma tarefa dupla nesse sentido. Por exemplo, o que Paulo quis dizer com “sujeitar às autoridades superiores” em Romanos capítulo 13 para os leitores do primeiro século tem alguma relação com respeito à postura do cristão perante a política governamental dentro de um sistema democrático?

Para o interprete efetuar essa conversão de ideias, primeiro ele deve entender por meio dos princípios hermenêuticos básicos tais como o contexto frasal, o telos do texto, o contexto histórico e sociocultural, a análise léxico-sintática, as variantes textuais que pode influenciar na tradução do texto, o conhecimento das figuras de linguagem, o gênero literário: qual é o gênero literário – oral ou escrito – de cada parte? O que fez surgir esse gênero? O Sitz in Leben (situação vivencial – de origem ou sociocultural).

Depois de efetuar essa analise exegética ao texto, então ele está pronto para fazer as seguintes perguntas: até que ponto um mandamento bíblico pode ser considerado condicionado culturalmente e, portanto, não normativos para o homem hodierno e qual a metodologia a ser usada para traduzir um mandamento de uma cultura para outra? Isto é, o que o autor bíblico diz tem alguma relevância para o mundo em que estou vivendo? Se tiver, como efetuar essa conversão?

É claro que a influência dos métodos e princípios interpretativos juntamente com os pressupostos filosóficos e culturais do intérprete irá influenciar o trabalho como um todo, inclusive selecionar quais mandamentos são ou não transculturais.

Neste sentido, seria ingênuo acreditar no princípio da total neutralidade científica ao trabalharmos um texto exegeticamente. Toda interpretação passa por um crivo de pressupostos. O intérprete está sujeito em certa medida ao seu Zeitgeist – espírito da época.

O trabalho do intérprete será influenciado pelos seus pressupostos. Por exemplo, se o pressuposto que sustenta a estrutura hermenêutica de determinada tradição parte de princípios humanísticos e naturalistas, desconsiderando os milagres a priori, ela nos dará um tipo de interpretação que solapa a inspiração e com ela a inerrância da Bíblia. A Bíblia é encarada de princípio como mero produto da religiosidade humana. Portanto, precisamos ser críticos e não cair na ingenuidade de acreditar que a hermenêutica é um todo monolítico.

O trabalho final do intérprete dependerá muito dos seus pressupostos metodológicos e filosóficos. Por exemplo, o resultado das pesquisas do chamado “Jesus Histórico”, onde o Jesus da fé da igreja é desassociado do Jesus da história, muito se deve à influencia dos pressupostos filosóficos kantiano sobre o mundo dos noumenos (a coisa em si) e o mundo dos fenômenos (a forma como a coisa se apresenta), juntamente com o princípio do ceticismo metodológico cartesiano. Enquanto a teologia a partir da experiência religiosa de Friedrich Schleiermacher tem muito da influencia do ceticismo de David Hume que postulava que todo nosso conhecimento está restrito às nossas experiências.

Conclusão

Acredito que uma hermenêutica que consiga lidar com a tensão entre a tentação de aderir a um cientificismo racionalista moderno ou sucumbir a um misticismo ingênuo ou  fundamentalista irá prestar um grande serviço não só a comunidade cristã, mas ao mundo ao seu redor, posto que cumprirá verdadeiramente a tarefa de não só traduzir a vontade de Deus ao homem moderno, mas de ter a sensibilidade de ouvir os anseios do mundo.

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Referências Bibliográficas

LINNEMANN, Eta. Crítica histórica da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

VIRKLER, Henry A. Hermenêutica: princípios e processos de interpretação bíblica. São Paulo: Ed. Vida, 1996.

ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

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