O Censo de 2010 e a Nova Representação da Identidade Protestante Brasileira
O senso-comum tem o poder de criar representações e sacralizá-las no imaginário social.
Uma dessas criações sacralizadas e projetadas socialmente tem a ver com o modelo que se construiu em torno do conceito “protestante” (até a quatro décadas atrás) que se tornou quase um tipo-ideal weberiano.
Tanto o agente institucional, socialmente organizado, a igreja, bem como o seu ator individual e religioso eram encarados por vezes dentro destas representações como fenômenos estanques.
A análise dos discursos populares do cotidiano corrobora com esta assertiva. A versão popular para representar pessoas religiosas costuma operar por meio de vários mecanismos sendo um deles o uso de anedotas, adágios e apodos tais como “beata” e “crente” que reporta a um imaginado aspecto estático deste fenômeno.
Será que podemos pensar neste problema como um resquício de um tipo de iluminismo popular? Uma crítica velada à religião? Seja como for, para o senso comum, religião estaria ligada ao conservadorismo e o dogmatismo, em suma: coisa de velho, portanto, apática à mudança.
O protestante independente da classificação na qual era visto, fosse tradicional ou pentecostal, era sempre representado como o “crente”, que incorporava um jeito austero de viver, dado a poucas mudanças culturais e fechado para o mundo das ideias, porquanto, precisava estar separado do “mundo” para não contaminar-se com ele.
O modelo protestante importado era o europeu, comportado, acultural e anti-católico. Formou-se uma cultura de negação, onde tudo deveria ser negado: a arte, a política e o mundo social, vistos como profano.
Algo interessante pode ser notado no tipo de repertório musical adotado pela maior denominação pentecostal do Brasil, a Assembléia de Deus. Ela optou pelo estilo “banda musical” quase militarizada. Isso nos reporta aos rituais da sociedade brasileira analisados pelo antropólogo Roberto Da Matta no trinômio “Carnavais Malandros e Heróis”, onde a parada militar é projetada como um tipo de ritual típico da burocratização, hierarquia e dominação, que caracteriza a nossa sociedade, portanto, longe de sugerir mudanças.
Enfim, ser protestante era quase ser um outsider norbertiano.
Entretanto, com a chegada da chamada “terceira onda”, ou neopentecostalismo esta representação começou a se transformar.
A construção da nova identidade protestante
O Censo religioso realizado em 2010 pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – veio reforçar o que para muitos seria apenas uma tendência religiosa efêmera, isto é, o crescimento vertiginoso dos evangélicos no Brasil com destaque especial para as igrejas neopentecostais.
Com o crescimento visível das igrejas neopentecostais a representação do sujeito social religioso e protestante foi gradativa e visivelmente transferido para este grupo religioso. Agora o crente é um sujeito totalmente diferente do seu antecessor.
Os neopentecostais assumiram costumes, jeitos e novas formas de pensar a religião diferente e porque não antagônicas as das igrejas históricas e dos pentecostais clássicos.
O que ocorreu para que a imagem protestante assumisse novos matizes? Qual é de fato a identidade protestante atual?
Os neopentecostais chegam ao Brasil por volta de 1950 trazendo inovações como reuniões em tendas, introdução de guitarras e a propaganda da cura divina. O símbolo com o qual esta nova tendência é percebida e identificada se dá por meio de um nome que praticamente se tornou o slogan dos evangélicos no país: gospel. O evangélico é americanizadamente gospel!
É significativo que os principais autores a trabalhar com a questão da pós-modernidade geralmente situam o surgimento da pós-modernidade próximo ao final dos anos 50 como diz Jamerson (2000, p. 27), quando afirma: “O argumento da sua existência [da pós-modernidade] apoia-se na hipótese de uma quebra radical ou coupure, cujas origens geralmente remontam ao fim dos anos 50 ou começo dos anos 60”.
Independente de como seja chamada, sociedade pós-industrial, sociedade de consumo ou sociedade da informação, o neopentecostalismo é produto desta efervescência social, por isso traz consigo todas as suas incoerências e contradições. Reflete as insatisfações e o espírito consumista que a caracteriza com todos os seus estereótipos. Poderíamos mesmo denominar os neopentecostais de pentecostalismo pós-moderno. Daí a ruptura com os protestantes que trazem consigo a ética e a identidade moderna como das igrejas tradicionais cuja origem se situa nos séculos da era moderna.
A identidade evangélica brasileira, vista agora como protestantismo neopentecostal é, portanto, inegavelmente pós-moderna ou até pós-pentecostal.
Para situar melhor a questão, podemos elencar resumidamente alguns conceitos chaves da pós-modernidade a saber: consumismo, pragmatismo, múltiplas identidades, ruptura, superficialidade, individualismo, cultura de massa, que nos ajudarão a entender melhor esta nova identidade, pois a identidade evangélica brasileira atual percorre todos estes elementos.
O evangélico pós-moderno é um sujeito que ao contrário de seus antecessores não quer fugir do mundo, mas emaranhar-se nele, ser absorvido por ele, ser moderno (ou pós-moderno?). Por isso, há um discurso e um apelo cotidiano voltado para a necessidade estética com o corpo, com as roupas, com os produtos cosméticos, enfim com a aparência.
O discurso teológico e ideológico construído via teologia da prosperidade leva á dominação dos costumes e dos hábitos e da mentalidade evangélica a estarem em sintonia com o mercado de consumo.
O evangélico para mostrar que é uma pessoa bem sucedida precisa sempre andar com um bom vestuário, carro e casa novos. Mas a linguagem também deve ser coerente. Podemos captar tais sinais ao assistirmos os programas televisivos destas igrejas onde a parte dos “testemunhos” é um momento importante do ritual.
O fiel precisa representar uma identidade que seja coerente com o discurso assumido e por isso muitas vezes há falsas representações, casos de pessoas que simplesmente precisam reafirmar essa identidade para reforçar e dar legitimidade ao discurso sem realmente estar vivendo o que professa.
Há também uma ruptura com os padrões éticos e morais do protestantismo tradicional.
O crente evangélico pós-moderno pode ir a praia, repartir o palco com cantores “profanos”, apropriar-se dos elementos simbólicos de outras religiões por que eles podem ser sacralizados como em um passe de mágica pela palavra “gospel”. Se for gospel, então pode!
É assim que são legitimados nesse sincretismo artefatos tais como o sal grosso, o galho de arruda, as rosas vermelhas do candomblé e as nomenclaturas do catolicismo como novenas e indulgências.
A identidade evangélica via neopentecostalismo é triunfalista. Se o protestantismo histórico queria fazer da pessoa um bom crente, no pentecostalismo pós- moderno ele precisa ser um “super crente”. Esta é exatamente a identidade que a sociedade pós-moderna comercializa, por isso é uma representação idealizada do sucesso a qualquer custo.
Para isso tais igrejas se transformam em sindicatos de mágicos, onde os anseios da vida pós-moderna são magicamente sanados simplesmente manipulando a divindade. Aliás, os símbolos religiosos só possuem validade se trazerem consigo alguma solução imediatista e material que supram as ansiedades consumistas dos sujeitos sociais em busca da felicidade. Uma felicidade construída pelo capitalismo, pela cultura de massa e pelas religiões da pós-modernidade.
Como tudo no capitalismo se transforma em mercadoria numa relação de clientela e mercado, a religião pós-moderna também consome produtos da fé.
As transformações na arquitetura apontadas por Jamerson, pode ser facilmente identificadas nestas novas igrejas. Não há interesse em construir templos. A antiga estética dos templos deu lugar ao espaço físico dos cinemas. Perdeu-se o senso de comunidade e irmandade tão acentuado nos protestantes tradicionais. Os locais de reuniões, sim, reuniões, pois até mesmo a terminologia foi trocada, de culto para reuniões, são espaços onde o cliente compra o produto e o consome ali mesmo. Com isso abriu-se uma ruptura da afetividade na relação entre o líder e o fiel.
Conclusão
Muito embora reconheçamos pontos positivos neste movimento e admitimos que podemos, até certo ponto, aprender com ele algo novo quanto à contextualização do evangelho, o movimento em si, no entanto, parece não produzir uma espiritualidade genuinamente bíblica e sadia, posto que os fundamentos teológicos nos quais emergem seus pressupostos praxiológicos são certamente questionáveis.
O conselho de Paulo de não nos “conformarmos com este mundo, mas transformarmo-nos pela renovação da nossa mente” (Rm 12.2), nada mais é do que um alerta para não condicionarmos o evangelho à cosmovisão mundana, caso contrário seremos afetados por ela em nossa maneira de pensar e agir.
Lamentável vocês publicarem algo que esteja disponível apenas para assinantes, se tratando de assuntos do reino. Concordo que ajuda se torne necessária para manter o site, poderiam “pedir” apenas pela ajuda financeira. Pois se tratando a maioria de leitores servos de Deus, viria ajuda.
verdade se é um artigo deve estar disponível para todos, fico horrorizado por estes comportamentos limitando algo que é tão relevante
Concordo com o irmão Paulo Vitor.