A Gênese da Predestinação na História da Teologia

Livro a genesis da predestinação A história da eleição e predestinação, enquanto doutrinas da igreja de Cristo, têm atraído os mais diversos estudiosos e também leigos que amam as Escrituras e a história do Cristianismo. Deste modo, quero recomendar um excelente livro que li recentemente, de um amigo, o Pr. Thiago Titillo, e compartilhar, com autorização do autor, um capítulo, a introdução de “A Gênese da Predestinação na História da Teologia Cristã.” Boa leitura.

 

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O filósofo existencialista francês Jean Paul Sartre disse que o homem “está condenado a ser livre”.[1] Todavia, os conceitos de condenação e liberdade não se complementam. Mas o paradoxo permanece: até que ponto o homem é livre e em que sentido essa liberdade é limitada por circunstâncias internas e externas?

Agostinho, bispo de Hipona e doutor da Igreja, buscou responder essas questões em sua vasta obra. No decurso das controvérsias maniqueísta, donatista e pelagiana, ele desenvolveu seu pensamento sobre o pecado e a graça, e seus desdobramentos extensivos ao livre-arbítrio humano e à predestinação divina.

Mas será que o pensamento de Agostinho sobre o pecado e a graça representa fielmente o ensinamento que ele recebeu da Igreja através dos mestres que o precederam? Ou as demandas em que se viu envolvido o desviaram do ensino comum da Igreja acerca dessas questões?

Por muito tempo defendi que o monergismo ensinado por Agostinho e resgatado pela Reforma através de Martinho Lutero, Ulrich Zuínglio e João Calvino, era a verdadeira doutrina transmitida por Cristo e seus apóstolos aos primeiros líderes da Igreja que os sucederam, tendo no bispo de Hipona a mente que sistematizou o pensamento já existente de forma embrionária nos primevos pais.[2] Após o abandono da doutrina por quase toda a Idade Média, a mesma fora redescoberta pelo monge agostiniano que incendiou a Alemanha, e grande parte da Europa, com suas ideias reformistas expostas nas noventa e cinco teses que foram afixadas na porta do Castelo de Wittenberg em 31 de outubro de 1517, véspera do “dia de todos os santos”.

Norman Geisler, em Eleitos, mas livres (2001), afirma haver uma diferença doutrinária entre o “Agostinho jovem” e o “Agostinho velho”. Essa mudança se deu em função da controvérsia pelagiana, embora a crise donatistas já a prenunciasse. Antes disso, porém, Agostinho seguiu os ensinos dos pais da Igreja que vieram antes dele.[3]

No entanto, devido ao propósito da obra, Geisler não trabalhou as mudanças políticas do império romano que contribuíram para o surgimento do partido donatista. É nesse contexto que o uso da força estatal em favor da Igreja Católica recebe o apoio de Agostinho, preparando o caminho para sua mudança de concepção acerca das doutrinas do pecado e da graça. A forma como bispo norte-africano lida com essa nova realidade em seu fazer teológico recebe especial atenção nessa obra.

É fato que nenhum grande pensador constrói seu sistema de crenças sem passar por períodos de ajustes e mudanças. Agostinho não foi exceção. Nesse trabalho, serão observadas as etapas que culminaram na maturidade teológica do pensamento de Agostinho, pontuando as implicações que cada momento teve na construção do seu edifício teológico.

Para tanto, os tratados e obras do mais destacado pai da igreja ocidental são imprescindíveis.[4]Autores como Peter Brown (2011), biógrafo moderno de Agostinho, e os historiadores Dale T. Irvin e Scott W. Sunquist (2004) foram de grande auxílio, principalmente na reconstrução do cenário político-social do período no qual o bispo hiponense se empenhou em combater os cismáticos donatistas. Na área da teologia histórica, autores como Roger Olson (2001), R. C. Sproul (2001), Henry Bettenson (2007) e Heinrich Denzinger (2007) contribuíram com suas obras para a produção da pesquisa que resultou neste livro.[5]

Para atender ao propósito geral, a obra se divide em quatro partes. Na primeira, são apresentados os termos-chaves que aparecerão no decorrer do livro: predestinação e livre-arbítrio, pecado e graça, monergismo e sinergismo.

A segunda parte trabalhará os sistemas teológicos em disputa na controvérsia sobre o pecado e a graça, a saber, o pelagianismo, o agostinianismo e o semipelagianismo.

A terceira parte trata especificamente da teologia agostiniana. Apresenta o seu desenvolvimento doutrinário acerca do pecado e da graça, e em quais circunstâncias o bispo de Hipona foi forjando seu pensamento durante os novos desafios demandados pelos debates com os maniqueus, donatistas e pelagianos. É justamente em meio à formulação do pensamento sobre o pecado e a graça que Agostinho toca na questão do livre-arbítrio e da predestinação.

Por fim, a quarta e última parte analisa a proposta doutrinal de Agostinho em relação à doutrina comum da Igreja, e o legado de suas ideias à fé cristã ocidental. Primeiramente, é feito um levantamento do pensamento de seis pais da Igreja anteriores a Agostinho sobre o pecado e a graça: três da igreja oriental – Justino, Ireneu e Orígenes –, e três da igreja ocidental – Tertuliano, Cipriano e Ambrósio. Tal levantamento permite observar quais elementos Agostinho absorveu de seus antecessores, e qual o ponto de distanciamento entre eles. Depois, aborda-se o tratamento dado pela Igreja às controvérsias entre Agostinho e os partidos pelagiano e semipelagiano. Os cânones e resoluções sinodais e conciliares são analisados – em especial, o Concílio de Éfeso (431) e o Sínodo de Orange (529) –, a fim de identificar as marcas permanentes do pensamento agostiniano na igreja ocidental.

A relevância desta pesquisa ganha força diante do quadro crítico em que se encontra a igreja evangélica brasileira: desconhece os tesouros que lhe fora legado pela tradição cristã bi-milenar, ignorando a fé que confessam, e o trabalho daqueles que dedicaram suas vidas a fim de extrair o precioso minério das Escrituras.

Haykin enumera quatro motivos para o desinteresse dos evangélicos contemporâneos pelos pais da Igreja: 1) a oposição ao catolicismo romano e suas tradições; 2) o fundamentalismo anti-intelectual; 3) a esquisitice de muitos da época da igreja antiga; 4) o desejo intenso de ser uma “pessoa do Livro”.[6] No cenário brasileiro a situação não é diferente. Embora esse cenário esteja mudando, a maioria dos textos publicados sobre os pais da Igreja ainda fazem parte do catálogo de editoras católicas.

Ao considerar a verdade de que os principais dogmas da religião cristã começaram a brotar da mente desses antigos teólogos, deve-se, sem negligenciar a Bíblia – que é a “lâmpada para os pés” na jornada em defesa da verdade –, atentar para os esforços dos mestres que ensinaram esta mesma Palavra (Hb 13.7). E Agostinho, certamente, figura entre esses grandes mestres da Igreja que merecem atenção especial.

Sua influência sobre a cristandade ocidental é notável. Ela “flui para dentro de movimentos religiosos radicais de oposição. Agostinho é apreciado como um dos maiores pais da Igreja Católica Romana. Contudo, foi ele que ‘nos deu a Reforma’”.[7] Assim como sua eclesiologia fora dada a Roma, sua antropologia e soteriologia foram entregues a Wittenberg e Genebra. João Calvino, um dos líderes do movimento de Reforma, escreveu: Augustinus totus noster est.[8]

Franklin Ferreira diz adequadamente que “poucos teólogos são tão relevantes para nossa época como Agostinho”.[9] Conhecer o pensamento de Agostinho é essencial para entender a fundamentação intelectual do cristianismo. Conhecer os fatores que contribuíram para a formação do seu pensamento é descobrir o porquê das principais doutrinas que norteiam a Igreja – seja católica ou protestante – nos últimos 1600 anos.

A civilização ocidental foi grandemente moldada pelo pensamento cristão antigo, e a contribuição de Agostinho nesse arcabouço é inegável: “Todo desenvolvimento da vida ocidental, em todas as suas fases, foi poderosamente afetado pelo seu ensino”.[10]

Hoje, mais do que nunca, a Igreja deve estar preparada para enfrentar novos desafios. Mas isso só será possível se ela entender a razão de suas crenças e práticas hodiernas, razão esta que se encontra num passado remoto.

Desconhecer o passado impossibilita uma correta compreensão do presente. Se a Igreja não tiver uma boa compreensão da sua história, assemelhar-se-á a uma pessoa desmemoriada, e, portanto, incapaz de usufruir uma vida com qualidade. Somente o conhecimento da verdade histórica torna possível entender o tempo presente e vislumbrar um futuro glorioso para a Igreja. E foi o próprio Senhor Jesus que afirmou ser o conhecimento da verdade libertador (Jo 8.32).

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[1] SARTRE, 1978, p. 9.

[2] No passado, esse ponto de vista foi defendido por John Gill, em The Cause of God and Truth [A causa de Deus e a verdade] (1838). Mais recentemente, McGregor Wright (2007) e Michael Horton (2003) também se esforçaram para evidenciar que a doutrina da predestinação pode ser encontrada nos pais pré-agostinianos.

[3] GEISLER, 2001, pp. 183-197.

[4] Sua autobiografia, Confissões, foi constantemente consultada no decorrer da obra. Fez-se uso também dos seguintes textos, a fim de demonstrar as transformações na teologia agostiniana: O livre-arbítrio, A verdadeira religião, O espírito e a letra, A natureza e a graça, A correção e a graça,A predestinação dos santos, O dom da perseverança e A cidade de Deus. Outras obras de Agostinho tiveram importância no decorrer deste trabalho. É o caso de A graça de Cristo e o pecado original, onde se encontram preservadas citações das obras de Pelágio.

[5] A presente obra é uma adaptação da pesquisa Agostinho e a gênese da predestinação: uma análise do desenvolvimento das doutrinas do pecado e da graça no pensamento do bispo de Hipona, apresentada como requisito para a conclusão do curso no Seminário Teológico Betel, Rio de Janeiro.

[6] HAYKIN, 2012, p. 12.

[7] PIPER, 2005, pp. 44-45.

[8] Literalmente, Agostinho é todo nosso. Para as demais expressões latinas, consultar o glossário ao final da obra.

[9] FERREIRA, 2006, p. 15.

[10] WARFIELD apud PIPER, op. cit., p. 44.

Extraído do site gospelprime.com.br

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