Fui ontem assistir ao filme “Vidro” do enigmático cineasta indiano M. Night Shyamalan. O longa-metragem é o desfecho dos antecessores “Corpo fechado” e “Fragmentado”, formando uma trilogia do universo em quadrinhos proposto por Shyamalan.
Vidro é a reunião da história dos personagens vigilante David Dunn (Bruce Willis), o homem de vidro Elijah Price (Samuel L. Jackson) e a Fera Kevin Wendell Crumb (James McAvoy) que possuem poderes extraordinários. Eles são capturados e analisados pela psiquiatra, a Doutora Ellie Staple (Sarah Paulson), membro de um grupo que não quer que pessoas deste naipe vivam entre nós. Para ela, os poderes dos três são frutos de distúrbios cerebrais.
Mas eu quero olhar para além da discussão da história em si. Quero buscar aqui uma metanarrativa com teor teleológico, isto é, qual é a mensagem que a trama quer passar para o público e como isso dialoga com a realidade concreta e religiosa. Para entendermos como isso funciona é preciso atentar as falas das personagens. Como em todos os filmes, o diretor coloca de modo fragmentado e esparso, frases na boca dos personagens que remetem a discussões filosóficas e religiosas sobre ética, fé, moral, ciência e racionalidade, que por sua vez, faz parte da cosmovisão do próprio diretor.
Os filmes de Shyamalan trabalham muito a tensão entre racionalidade e irracionalidade e seus correlatos ciência x religião. O universo religioso explorado pelo autor em seus filmes contempla a morte e a busca por sentido; a fé e a organização escatológica do mundo e o embate entre ciência e fé, racionalidade experiência. A fé é vista pelo diretor como um fator de força pessoal, um “dom” sobre-humano, mas ainda humano como fica bem claro na boca da psiquiatra.
O tempo todo o filme fala sobre o potencial humano, sobre duvidar do milagroso ou normalizar o excepcional. O filme prega que nossos maiores propósitos e habilidades são alcançados através do quebrantamento e da crença. Nós nos referimos a esse processo como fé. Mas não se iluda com a semântica. Essa não é a fé bíblica. Não, não seria correto chamar Vidro de um filme baseado na fé. A discussão coloca em xeque a nossa capacidade de tornar o irreal real e vice-versa. Somos realmente o que acreditamos ser ou fomos iludidos para fugir da realidade? Como você define quem é bom ou mau moralmente?
Vidro mostra que a natureza pode sair de um padrão estabelecido pela ciência e produzir anomalias e também que muitos fatos da realidade escapam à ciência, mas não que seja sobrenatural, mas apenas, potencialmente, sobre-humanos. Você pode ser realmente aquilo que acredita. Desta maneira ele dialoga com recentes filmes de super-heróis da Marvel e D&C cujos personagens são distantes ontologicamente dos de Shyamalan.
É claro, há muitos pontos em que a filosofia do filme converge e diverge da Bíblia. Por exemplo, a fé bíblica não é a fé em si mesma, mas a fé em uma pessoa – Jesus Cristo. Deus nos deu certos potenciais e estes devem ser usados para a glória de Deus e ajudar o próximo, visando o bem da coletividade. O sofrimento tão cultuado pela fera, desde Fragmentado, não é o que torna uma pessoa “pura”, ele é importante, mas não é um fim em si mesmo dentro do pensamento cristão. Enfim, é isso.
A cultura POP está constantemente nos pregando o seu evangelho. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.