A Falácia Genética de Leandro Quadros

A crença na imortalidade da alma é de origem grega? Pelo visto, é isso o que acredita o apresentador Leandro Quadros, do programa adventista “Na mira da verdade”. Tanto nos dois blogs que ele administra, quanto nos embates com evangélicos na TV, a crença na imortalidade da alma é constantemente ligada a uma suposta origem grega, portanto pagã. Ora, se é de origem pagã, os cristãos não deveriam tê-la em seu bojo doutrinário. Em que pesem as inúmeras provas fartamente documentadas sobre a crença na sobrevivência da alma após a morte dentro das três tradições cristãs – ortodoxa, católica e protestante – e os inúmeros textos bíblicos que a sustentam, Quadros insiste em creditar a origem da doutrina ao paganismo grego.

Não pretendo entrar no mérito teológico e bíblico da questão (pois para mim isso já é assunto resolvido), mas tão somente avaliar a falácia por trás do argumento de Quadros.

O que é falácia genética?

Ora, falácia genética “é uma falácia lógica que consiste em aprovar ou desaprovar algo baseando-se unicamente em sua origem. Ocorre quando alguém tenta ridicularizar uma ideia, prática ou instituição simplesmente tendo em conta sua origem (gênese) ou seu estado anterior.”

Acredito que o argumento da origem grega da crença na imortalidade da alma de Quadros é uma falácia genética pelas seguintes razões:

1) Mesmo que os cristãos viessem a crer na imortalidade da alma por meio da filosofia grega, isso não tornaria a crença inteiramente falsa. A origem da crença é irrelevante para a veracidade ou falsidade da doutrina. Não se pode invalidar uma crença simplesmente baseando-se no fato de como ela passou a ser aceita. Portanto, mesmo que a crença na imortalidade da alma tivesse origem na filosofia grega, ainda assim ela poderia estar correta.

2) Outro argumento decorrente do que foi exposto acima é que culturas pagãs, em alguns momentos da história, também tiveram seus lampejos de revelação. Por exemplo, as crenças básicas judaico-cristãs podem ser encontradas em praticamente todos os povos: a crença em um Deus, em um princípio cosmológico, no pecado (erros morais), em um paraíso, na esperança do além-túmulo e até em um dilúvio são elementos comuns na herança religiosa da humanidade. É claro que os pormenores diferenciam de povo para povo devido às influencias culturais, religiosas e sociais. A dispersão das raças na Torre de Babel e o consequente distanciamento do Deus verdadeiro fizeram com que o pecado deturpasse essas crenças básicas originais em todas as culturas.

Falando sobre a similaridade entre as cosmogonias existentes no mundo, o teólogo Merrill Unger traça a mesma linha de raciocínio ao declarar que “Muito cedo os povos se desviaram daquelas primeiras tradições da raça humana, e em climas e temperaturas variadas, têm-nas modificado de acordo com sua religião e modo de pensar. As modificações com o tempo resultaram na corrupção da tradição pura e original. O relato de Gênesis não é o único inalterado, mas em qualquer lugar sustenta a inerrante impressão da inspiração divina quando comparado às extravagâncias e corrupções de outros relatos. A narrativa bíblica, podemos concluir, representa a forma original que deve ter sido assumida por essas tradições.” [1]

3) Os cristãos têm reconhecido esses lampejos de revelação, ainda que pontuais, também na cultura grega (At 17:23-28). Podemos citar como exemplo a doutrina grega do “Logos”. A partir de Heráclito, logos também pode ser interpretado como a razão universal, fixa e imutável que ordena e organiza todas as coisas. João se apropria desse conceito grego e o adapta à teologia cristã identificando-o com Jesus, a razão pela qual Deus fez e organizou o mundo (Jo. 1.1-3). Hades, o submundo para onde iam as almas dos mortos na mitologia grega, foi outro conceito readaptado nos escritos neotestamentários para ensinar sobre o estado intermediário dos mortos (Lc 16.19). Isso nos ensina que toda verdade que é expressa por uma cultura pagã não deixa de ser verdade só pelo fato de ter sido propagada por meio dela.

Seria ignorância demais rejeitarmos a bondade de Deus, só pelo fato de saber que a filosofia grega de Platão, Sócrates ou Aristóteles a ensinou. A ideia continuará sendo verdadeira, independente de ter sido dita por um grego pagão ou um cristão.

Calvino dizia que toda a verdade é a verdade de Deus. A verdade é sempre verdade, mesmo sendo dita pela boca de um herético, assim como a heresia sempre será errada mesmo sendo proferida por um cristão ortodoxo.

Justino, o Mártir chamava isso de “germes” da verdade: “Em geral, tudo o que os filósofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplação das coisas celestes, aproveitaram-se dos profetas, não só para poder entender, mas também para expressar isso. Daí que parece haver em todos algo como germes da verdade. Todavia, demonstra-se que não o entenderam exatamente, pelo fato de que se contradizem uns aos outros.” (Apologia I, 44)

4) É lamentável que muitos estudiosos cometem constantemente essa falácia. No começo dos estudos da História das Religiões comparadas, muitos como o antropólogo James G. Frazer perceberam certos paralelos interessantes entre as crenças religiosas pagãs com o cristianismo. Por exemplo, a crença num ciclo de morte e ressurreição de vários deuses, tais como Adônis e Osíris, levaram-no à falsa conclusão de que a doutrina cristã da ressurreição derivava destas crenças pagãs. Hoje se sabe que, apesar de alguma semelhança, o conceito de ressurreição destes deuses mitológicos é extremamente grosseiro e não reflete de modo algum o conceito cristão de ressurreição que é único entre todas as religiões.

5) Semelhantemente as Testemunhas de Jeová quando, desesperadamente, tentam ligar a crença na Santíssima Trindade com o paganismo, cometem o mesmo erro lógico.

Por exemplo, o historiador Edward Gibbon é citado na brochura antitrinitária “Deve-se Crer na Trindade?” publicada pela Sociedade Torre de Vigia da seguinte maneira: “Se o paganismo foi conquistado pelo cristianismo, é igualmente verdade que o cristianismo foi corrompido pelo paganismo. O puro deísmo dos primeiros cristãos….foi mudado, pela Igreja de Roma, para o incompreensível dogma da trindade. Muitos dos dogmas pagãos, inventados pelos egípcios e idealizados por Platão, foram retidos como sendo dignos de crença.”

Percebe-se logo que o raciocínio é o mesmo usado por Quadros quando vai argumentar na base da origem grega da crença na imortalidade da alma. Ambos são falaciosos.

6) Levando a lógica de Quadros às suas últimas consequências, poderíamos dizer que até mesmo as doutrinas da ressurreição e do juízo final podem ser colocadas na conta dos pagãos.

Lembremos que no Antigo Testamento as duas doutrinas são praticamente desconhecidas na Torá e na teologia do primeiro templo; neste último aparecem apenas inferências textuais em alguns livros proféticos tais como Isaías (26.19), Ezequiel (Ez 37.1-14) e poéticos: Jó (19.25-27), Salmos (49.15; 73.24, 25) e Provérbios (23.14), mas, sobretudo, se referem a um escape do Sheol.

Contudo, a noção escatológica de vida no pós-morte com céu e inferno, de um julgamento a ser realizado no final dos tempos, começa praticamente com Daniel na época do império medo-persa (Dn 12.2).

Baseados neste pormenor histórico, muitos acreditam que tanto a escatologia de Daniel, quanto a do 2º Templo, receberam influências do Mazdeísmo, religião persa de Zoroastro que ensinava sobre a recompensa de ímpios e justos em um juízo final, inferno e paraíso e a parousia de Saoshyant (o “que restaura a vida”).

O conceito judaico do 1º templo é bem concreto, não existe o conceito de vida  no pós-morte. A vida diz respeito àquilo que pode ser usufruído das bênçãos materiais de Javé aqui e agora na terra. Tanto é assim que os saduceus, que só aceitavam a Torá, não acreditavam na ressurreição (Mt 22.23; At 23.8).

Diz o teólogo Mackintosh: “Forte evidência existe em favor da hipótese de que a ideia da ressurreição entrou na mente hebraica vinda da Pérsia” (H. R. Mackintosh. Immortality and the Future: The Christian Doctrine of Eternal Life. p. 34).

7) Ademais, fica difícil, se não impossível, não notar o silêncio de Quadros quanto a confessar a real diferença entre o conceito grego e o cristão de imortalidade da alma. Se foi por ignorância ou má-fé que ele deixou de mencionar, eu não tenho condições de dizer. O fato é que a crença básica de ambos os conceitos se restringe apenas ao pormenor de que essa alma é imortal. Só isso. A similaridade acaba por aí. Fatos como a origem da alma, a sua essência, o modo de como ela adquire a imortalidade, seu destino e sua relação com o corpo são questões que separam drasticamente as duas concepções – são como água e óleo.  Mas, Quadros, não menciona isso.

8) Finalmente, Quadros omite outro fato que é elementar na teologia cristã, mas que ajuda a jogar luz sobre o debate, isto é, que a revelação doutrinária é progressiva (Dt 32.2; Is 28.10). Muitas doutrinas que aparecem no Novo Testamento estão embutidas de modo embrionário no Antigo Testamento. Exemplos clássicos são: a doutrina da Trindade, da personalidade do Espírito Santo, do céu e inferno, dos demônios, da ressurreição e também da imortalidade da alma que foram mais plenamente desenvolvidas na teologia bíblica do Novo Testamento.

Portanto, o argumento aniquilacionista de Quadros só surtirá efeito, e tão somente, se ele conseguir provar que: 1) essa crença é invenção exclusiva dos gregos e, 2) que a Bíblia oferece um ensino claro e direto contrário à existência da alma fora do corpo.

Concluímos, baseados nestas oito razões que o argumento de Quadros para refutar a crença na imortalidade da alma, baseando-se numa crença parecida entre os gregos, é de debilidade evidente, melhor dizendo: uma falácia genética.

 

[1] Merrill F. Unger, Archaeology and the Old Testament, p. 37, citado por DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). Disponível em: http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23. Acesso em: 06out16.

 

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