Permissão para o tráfico de seres humanos como se fossem equipamentos agrícolas? (I)
A Escravidão em Israel
O escravo fugitivo e abolicionista Frederick Douglas (1817-95) escreveu em sua autobiografia sobre seu primeiro proprietário de escravos, Capitão Antony.
Ele era um homem cruel, endurecido por uma longa vida como proprietário de escravos. Ele às vezes parecia ter grande prazer em chicotear um escravo. Eu acordava com frequência ao amanhecer com os gritos mais comoventes de minha própria tia, a quem ele costumava amarrar ao poste e chicotear suas costas nuas até ela estar literalmente coberta de sangue. Nem palavras, lágrimas ou orações de sua vítima ensanguentada parecia mover seu coração de ferro de seu propósito sanguinário. Quanto mais alto ela gemia mais forte ele batia; e onde o sangue escorria mais rápido, lá ele batia por mais tempo. Ele a chicotearia para fazê-la chorar e a chicotearia para fazê-la calar; e até que ele não fosse vencido pela fadiga, ele não cessaria de manusear o chicote ensanguentado. Eu lembro a primeira vez que testemunhei esta exibição horrível. Eu era bem pequeno, mas eu me lembro bem. Eu nunca esquecerei isso enquanto eu me lembrar das coisas. Essa foi a primeira de uma longa série tão ultrajante, das quais eu estava sentenciado a ser testemunha e participante. Isto me atingiu com uma força horrível. Era o portão ensanguentado, a entrada do inferno da escravidão, pelo qual eu tinha que passar. Foi o espetáculo mais terrível. Eu gostaria de poder passar para o papel os sentimentos que observei.[1]
Harriet Beecher Stowe (1811-96), autor do poderoso bestseller Uncle Tom’s Cabin, escreveu que os mestres do Sul tiveram controle absoluto sobre todas as facetas das vidas de seus escravos: “O poder legal do mestre equivalia a um despotismo absoluto sobre o corpo e alma,” e “não havia nenhuma proteção para a vida do escravo.”[2]
Serviço Contratado mencionado na Bíblia
Um equivoco que os críticos fazem é associar a servidão do Antigo Testamento com a escravidão do antebbelum (período pré guerra) no Sul [dos EUA] – como o tipo de cenário que Douglas descreveu. Por contraste, a servidão Hebraica (débito) poderia ser comparada as condições similares na América colonial. Pagar tarifas pela passagem para a América era tão dispendioso para muitos indivíduos arcar. Então, eles se contratariam trabalhando nos domicílios – frequentemente em posição de aprendizes – até terem pagos seus débitos. Metade de dois terços dos imigrantes brancos as colônias Britânicas foram servos contratados.[3]
Da mesma forma, um israelita carente de siclos pode se tornar um servo contratado para pagar seus débitos a um “chefe” ou “empregador” (‘adon). Chamá-lo “mestre” é com frequência uma maneira de um termo tão forte, assim como o termo ‘ebed (servo, empregado) tipicamente não deveria ser traduzido como “escravo”. John Goldingay comenta que “não há nada inerentemente humilde ou indigno sobre ser um ‘ebed”. De fato, é uma honra, um termo dignificado.[4] Mesmo quando os termos comprar, vender, ou adquirir são usados para servos/empregados, eles não significam que a pessoa em questão é “apenas uma propriedade”. Pense sobre um jogador de esportes hoje que é “negociado” para outro time a que ele “pertence”. Sim, os times tem proprietários, mas dificilmente estamos falando sobre escravidão aqui. Ao contrário, estes são acordos contratuais formais, que é o que encontramos nos acordos de servidão/empregados no Antigo Testamento.[5] Um exemplo desse relacionamento entre empregador/empregado contratado foi o trabalho de Jacó para Labão por sete anos para que ele pudesse casar com sua filha Raquel. Em Israel, se tornar um servo voluntário era uma medida comum de prevenção à fome; a pessoa não tinha nada a não ser ele mesmo, o que significava ou o serviço ou a morte. Enquanto a maioria das pessoas trabalhavam nos negócios da família, os servos contribuiriam como trabalhadores domésticos. Contrário aos críticos, esta servidão não era muito diferente experimentalmente de um emprego pago em uma economia monetária como a nossa.
Agora, o débito tendia a vir para as famílias, não apenas aos indivíduos. Ou por causa da falha nas colheitas ou a endividamento sério, um pai poderia entrar voluntariamente em um acordo contratual (“se” vender) para trabalhar no domicílio de outro: “…e alguém do seu povo empobrecer e se vender a esse estrangeiro…” (Levítico 25:47 NVI). Talvez sua esposa e filhos pudessem “ser vendidos” para ajudar a sustentar a família em tempos economicamente insustentáveis. Se sua parentela não o “redimiu” (pagou seu débito), então ele trabalharia como um “servo do débito” até ele ser liberado após seis anos.[7] A terra da família teria que ser penhorada até o ano do Jubileu, a cada 50 anos (veja Levítico 25, que na verdade fala de estágios sucessivos de destruição em Israel nos versos 25-54).[8] Em outras palavras, essa servidão não era imposta por alguém de fora, como era feito pelos comerciantes de escravos e proprietários de plantações no antebellum (período antes da guerra) no Sul [dos EUA].[9] E mais, este serviço contratado não era incomum em outras partes do antigo Oriente Próximo (embora as condições eram frequentemente piores). E mais tarde, quando os habitantes de Judá tornaram a pegar servos Hebreus, que haviam sido libertos, Deus os condenou por violar a Lei de Moisés e por esquecer que um dia eles foram escravos no Egito a quem Deus libertou. Deus falou aos habitantes de Judá que por causa de suas ações eles seriam exilados na terra de seus inimigos (Jr 34:12-22).
Uma vez que o servo era liberto, ele estava livre para buscar seu próprio sustento sem nenhuma obrigação posterior dentro desse domicílio. Ele retornava a ser um participante completo na sociedade israelita. Ao se tornar um servo contratado significava um pequeno passo abaixo na escala social, mas a pessoa poderia voltar como um cidadão completo assim que o débito fosse pago ou ele era liberto no ano sétimo (ou no quinquagésimo). Contudo, a Lei se preocupava que um servo contratado fosse tratado como um homem “contratado anualmente” e não fosse “dominado impiedosamente” (Levítico 25: 53-54 NVI). De fato, os servos em Israel não eram excluídos da sociedade durante o tempo de servidão, mas eram completamente incorporados dentro dela. Como mencionei antes, o perdão das dívidas em Israel a cada sete anos era fixo e assim pretendia ser, de longe, mais consistente do que os congêneres do Antigo Oriente Próximo de Israel, pois a libertação do débito (se ocorresse) era tipicamente mais esporádica.
Então inegavelmente a servidão perpetua era proibida, a menos que alguém amasse o chefe da família e quisesse se unir a ele (Êxodo 21:5). Os servos – mesmo se eles não tivessem pago suas dívidas – eram garantidos a libertação a cada sete anos com todos os débitos perdoados (Deuteronômio 15). Como veremos, o status legal deles era singular e uma melhora dramática sobre os códigos legais no antigo Oriente próximo. Um estudioso escreve que “O Hebraico não tem nenhum vocabulário de escravidão, apenas de servidão.”[10]
A garantia de libertação de um servo Israelita dentro de sete anos era um controle ou regulação para impedir o abuso e a institucionalização de tais posições. O ano de libertação relembrava aos israelitas que a servidão ou pobreza inferida não era um acordo social ideal. Por outro lado, a servidão existia em Israel precisamente porque a pobreza existia: sem pobreza, sem servos em Israel. E se os servos viviam em Israel, isso era um acordo voluntário (pobreza inferida) e não forçada.
Meios para ajudar o pobre
No mundo antigo (e além), bens (ou propriedades) e a escravidão tinha três características:
- Um escravo era uma propriedade.
- Os direitos do proprietário do escravo sobre a pessoa e trabalho do escravo era total e absoluta.
- O escravo era despido de sua identidade – racial, familiar, social e marital.[11]
Do que nós vimos, isso não descreve o servo Hebreu de forma alguma, nem cabe (como veremos no próximo capítulo) ao “escravo” não israelita em Israel.
As leis de servidão de Israel estavam preocupadas em controlar ou regular – não idealizar – um acordo de trabalho inferior. A servidão em Israel foi induzida pela pobreza, se entrava voluntariamente e era longe de ser ideal. O objetivo dessas leis era combater abusos potenciais, não para institucionalizar a servidão.
Quando comparamos o sistema de servidão de Israel com o Oriente Próximo antigo em geral, o que nós temos é um acordo muito tranquilo e, em muitas formas, muito atrativo para os israelitas empobrecidos. As leis de servidão visavam beneficiar e proteger os pobres – ou seja, aqueles mais suscetíveis a entrar no serviço contratado. A servidão era voluntária: uma pessoa que (por qualquer razão) não tenha nenhuma terra “se vende” (Levítico 25: 39, 47; compare com Deuteronômio 15:12). Alguém também pode vender um membro da família como um servo contratado em outra família para trabalhar até o débito ser pago. Uma vez que a pessoa era liberta de suas obrigações como servo, ele tinha o “status pleno de cidadania desimpedida”.[12]
A legislação do Antigo Testamento procurou impedir cativeiro de servidão. Um bom negócio da legislação mosaica foi dada para proteger o pobre de até mesmo serviço contratado temporário. Aos pobres foram dadas oportunidades de colher a beira dos campos ou recolher frutas remanescentes nas árvores após seus irmãos israelitas terem feito a colheita na terra (Levítico 19: 9-20; 23:22; Dt 24:20-21). Também os irmãos israelitas foram ordenados a emprestar livremente aos pobres (Dt 15: 7-8), a quem não se deviam cobrar juros (Êxodo 22: 25; Levítico 25: 36-37). E se os pobres não pudessem arcar com os melhores sacrifícios de animais, eles poderiam sacrificar animais mais baratos e menores (Lv 5: 7, 11). As dívidas também deviam ser canceladas automaticamente a cada sete anos. De fato, quando os servos endividados eram libertados, eles deveriam ser providos generosamente sem “relutância no coração” (Dt 15:10 NVI). A questão central: Deus não queria que houvesse pobreza em Israel (Dt 15:4). Portanto, as leis de serviço existiam para ajudar os pobres, não para prejudicá-los nem para os denegrir.
A meta final: Nenhuma pobreza, nenhuma servidão (Dt 15: 1-18)
No final de cada sete anos as dívidas deverão ser canceladas. Isso deverá ser feito da seguinte forma: Todo credor cancelará o empréstimo que fez ao seu próximo. Nenhum israelita exigirá pagamento de seu próximo ou de seu parente, porque foi proclamado o tempo do Senhor para o cancelamento das dívidas. Vocês poderão exigir pagamento do estrangeiro, mas terão que cancelar qualquer dívida de seus irmãos israelitas. Assim, não deverá haver pobre algum no meio de vocês, pois na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando como herança para que dela tomem posse, ele os abençoará ricamente, contanto que obedeçam em tudo ao Senhor, ao seu Deus, e colocarem em prática toda esta lei que hoje lhes estou dando. Pois o Senhor, o seu Deus, os abençoará conforme prometeu, e vocês emprestarão a muitas nações, mas de nenhuma tomarão emprestado. Vocês dominarão muitas nações, mas por nenhuma serão dominados. Se houver algum israelita pobre em qualquer das cidades da terra que o Senhor, o seu Deus, lhe está dando, não endureçam o coração, nem fechem a mão para com o seu irmão pobre. Ao contrário, tenham mão aberta e emprestem-lhe liberalmente o que ele precisar. Cuidado! Que nenhum de vocês alimente este pensamento ímpio: “O sétimo ano, o ano do cancelamento das dívidas, está se aproximando, e não quero ajudar o meu irmão pobre”. Ele poderá apelar para o Senhor contra você, e você será culpado pelo pecado. Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer. Sempre haverá pobres na terra. Portanto, eu lhe ordeno que abra o coração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado de sua terra. Se seu concidadão hebreu, homem ou mulher, vender-se a você e servi-lo seis anos, no sétimo ano dê-lhe a liberdade. E, quando o fizer, não o mande embora de mãos vazias. Dê-lhe com generosidade dos animais do seu rebanho, do produto da sua eira e do seu lagar. Dê-lhe conforme a bênção que o Senhor, o seu Deus, lhe tem dado. Lembre-se de que você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu. É por isso que hoje lhe dou essa ordem. Mas se o seu escravo lhe disser que não quer deixá-lo, porque ama você e sua família e não tem falta de nada, então apanhe um furador e fure a orelha dele contra a porta, e ele se tornará seu escravo para o resto da vida. Faça o mesmo com a sua escrava. Não se sinta prejudicado ao libertar o seu escravo, pois o serviço que ele prestou a você nesses seis anos custou a metade do serviço de um trabalhador contratado. Além disso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em tudo o que você fizer. (Deuteronômio 15:1-18)
Esta legislação ordena o perdão dos débitos acumulados das pessoas pobres (ou seja, dos servos); este perdão do débito deveria acontecer a cada sete anos, que mostra a extraordinária preocupação de Deus pelo empobrecido na terra. Agora alguns irão apontar vários reis mesopotâmios durante o segundo milênio Antes de Cristo que libertava escravos e endividados durante o primeiro ou segundo ano de seu reinado – e outra vez ou mais depois dessa. Mas tais libertações foram tipicamente esporádicas, diferente dos intervalos fixos exigidos em Israel a cada sete anos e no cinquentenário.[13]
Se você apenas deu uma olhada de leve no texto de Deuteronômio e não captou sua importância, volte e realmente o leia. A meta imperiosa, revolucionária, expressa neste texto é erradicar totalmente a servidão por débito na terra: “Assim, não deverá haver pobre algum [e portanto, nenhuma servidão por débito] no meio de vocês” (v. 4).[14] No entanto, sendo um realista, Deus estava consciente que a condição inferior existiria e que a pobreza (e assim a servidão) continuaria na terra (v. 11). Mesmo assim, esta situação indesejada deveria ser combatida ao invés de ser institucionalizada.
Ao manter este espírito de “erradicar a pobreza/erradicar a servidão”, um servo liberto deveria ser acompanhado com provisões generosas e um espírito gracioso. O “mestre” não podia ter nenhum pensamento ímpio com o seu servo; antes, ele devia enchê-lo com provisões (vv. 13-14). A razão motivadora para essa gentileza e boa vontade era que “você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu. É por isso que hoje lhe dou essa ordem.” (v. 15). Mesmo se a pobreza (e portanto a servidão) não pudesse ser erradicada, Israel devia se empenhar em direção a esta meta.
A dignidade do servo endividado
Ao invés de relegar o tratamento dos servos (escravos) para o fim do código legal (feito comumente em outros códigos legais no antigo Oriente Próximo), o código legal de Israel colocou a questão à frente e no centro em Êxodo 21. Pela primeira vez no antigo Oriente Próximo, a legislação exigia o tratamento aos servos como pessoas, não como propriedade.
Em outras culturas antigas do Oriente Próximo, era o rei que era a imagem dos seus deuses sobre a terra – e certamente não o escravo. Por contraste, Genesis 1: 26-27 afirma que todos os seres humanos são portadores da imagem de Deus. Esta doutrina serve como base para afirmar a dignidade e os direitos de todos os seres humanos. Da mesma maneira, Jó 31: 13-15 claramente revela a humanidade inescapável – e assim a igualdade – do mestre e do servo juntos: “Se neguei justiça aos meus servos e servas, quando reclamaram contra mim, que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas? Aquele que me fez no ventre materno não fez também a eles? Não foi ele quem formou a mim e a eles No interior de nossas mães?” (NVI).
Os servos (escravos) em Israel, diferente de seus contemporâneos no antigo Oriente Próximo, foram dados direitos humanos/legais sem precedentes, mesmo quando não igualados as pessoas livres (que poderiam, se circunstancias infelizes ocorressem, se acharem em necessidade de se colocar dentro serviço contratado).[15] Como o ensaio da Anchor Bible Dictionary sobre “Escravidão” observa “Nós temos na Bíblia o primeiro apelo na literatura mundial para tratar os escravos como seres humanos, para o seu próprio bem, e não apenas para interesse de seus mestres.”[16] Por comparação, “a ideia de um escravo como exclusivamente o objeto de direitos e como uma pessoa fora da sociedade regular era aparentemente estranho as leis do [resto do] Antigo Oriente Próximo,” onde os escravos eram marcados e tatuados a força para identificação (faça o contraste com Êxodo 21: 5-6). De fato, em “contraste com muitas doutrinas antigas, a lei Hebraica era relativamente branda com os escravos e os reconhecia como seres humanos, sujeitos a defesa de atos intoleráveis, embora não na mesma extensão das pessoas livres.”[17] Como veremos, a proteção do escravo fugitivo que fugiu para Israel era extremamente diferente das leis de escravos nos arredores, nas culturas do Oriente Próximo antigo, e isso era devido a própria história de Israel como escravos no Egito. Este fato tornaria, em efeito, a escravidão em uma “instituição voluntária.”[18]
Alguns argumentarão neste ponto que as leis Hititas foram aliviadas quando elas foram aprimoradas; elas se tornaram mais humanas. Verdade, mas os resultados não foram sempre positivos como se pode pensar. Por exemplo, assassinato não era mais punido com a pena de morte – exceto para escravos. As melhoras foram, no melhor, uma miscelânea de coisas boas e ruins!
No resto deste capítulo, veremos não apenas como três leis chaves em Israel foram distintas no antigo Oriente Próximo, mas também como se elas tivessem sido observadas atentamente pelos “crentes” do Sul dos Estados Unidos e pelos cristãos europeus, a escravidão não teria vigorado. Vamos olhar estas leis mais de perto.
A libertação dos servos feridos
Outra melhora nítida nas leis de Israel sobre outros códigos legais do antigo Oriente Próximo foi a libertação dos servos feridos (Êxodo 21: 26-27). Quando um empregador (mestre) arrancava acidentalmente o olho ou arrancava um dente de seu servo/empregado, macho ou fêmea, ele ou ela devia ser liberto. Nenhum abuso corporal dos servos era permitido. E como discutiremos no próximo capítulo, se a disciplina de um empregador resultasse na morte imediata de seu servo, esse empregador (mestre) devia morrer (Êxodo 21: 20; perceba que a palavra “punido” é muito forte, sempre em conotação com a morte).
Por contraste, o Código de Hamurabi permitia ao mestre cortar as orelhas de seu escravo desobediente.[19] Tipicamente nos códigos legais do antigo Oriente Próximo, os mestres – não os escravos – eram meramente compensados financeiramente por ferimentos a seus escravos. No entanto, a lei Mosaica, tornava os mestres responsáveis pelo tratamento que eles davam aos seus servos, e não simplesmente servos de outra pessoa. Como veremos brevemente, se o servo morrer devidos os abusos físicos do empregador, isso era considerado assassinato. Tudo isso não tinha paralelo em outros códigos legais antigos do Oriente Próximo.[20]
Alguns podem perguntar se libertar um servo por arrancar um olho ou um dente é a melhor razão para libertar os servos do que em outras culturas antigas no Oriente Próximo. Afinal, Hamurabi permitiu a libertação de uma mulher escrava e seus filhos (engravidada pelo mestre) se o mestre não decidiu os adotar.[21] Claro, a própria questão fugiu do ponto.[22] Como vimos, os israelitas tinham que libertar seus servos a cada sete anos, a menos que eles quisessem ficar. Em 1 Crônicas 2: 34-35, um descendente de Calebe chamado Sesã deu sua filha em casamento ao seu servo egípcio Jará – um movimento muito bom na escada social!
Mais uma coisa, tenha em mente que muitos – talvez a maioria – dos servos foram pessoas jovens que foram distribuídos por pais carentes para famílias mais prósperas que podiam alimentá-los, vesti-los e protegê-los. Outros adultos serviram como pais in loco – no lugar dos pais – que tipicamente incluía a disciplina das crianças servas. Como Provérbios 29:19 coloca: “Meras palavras não bastam para corrigir o escravo; mesmo que entenda, não reagirá bem.” (NVI). A desvantagem disso era que às vezes o chefe do domicilio provavelmente exageraria na punição, resultando possivelmente em ferimentos.[23]
Leis antissequestros
Outra característica singular da lei Mosaica é sua condenação de sequestrar uma pessoa e vender como um escravo, um ato punível com a morte:
Aquele que sequestrar alguém e vendê-lo ou for apanhado com ele em seu poder, terá que ser executado. (Êxodo 21:16)
Se um homem for pego sequestrando um dos seus irmãos israelitas, tratando-o como escravo ou vendendo-o, o sequestrador terá que morrer. Eliminem o mal do meio de vocês. (Deuteronômio 24:7). (Perceba a proibição de sequestro em 1 Timóteo 1:10).
Esta proibição contra o sequestro é um ponto perdido ou ignorado por aqueles que comparam a servidão em Israel com a escravidão no antebellum do Sul [dos EUA] para não falar do Oriente Próximo antigo.
Ajudando os escravos fugitivos
Chegando neste ponto, nós já nos referimos primeiramente aos servos israelitas, não aos estrangeiros. Mas esta lei particular revela apenas quão diferente eram as leis de Israel comparadas com o antebellum do Sul [dos EUA] – apesar das afirmações dos Confederados de seguir a Bíblia fielmente. Esta lei de refúgio dos fugitivos também seria aplicada aos servos israelitas que fugiam de seus empregadores severos buscando refúgio. Outra característica singular nas “leis de escravos” de Israel era esta: Israel foi ordenado a oferecer refúgio seguro aos escravos fugitivos estrangeiros (Dt 23: 15-16). As leis de escravos fugitivos dos estados do Sul [dos EUA] requeriam legalmente que os escravos fugitivos retornassem aos seus mestres. Isto se parece mais com o código de Hamurabi do que com a Bíblia. Hamurabi exigia a pena de morte para aqueles que ajudavam escravos fugitivos.[24]
Em outros casos menos severos – nas leis de Lipit-Ishtar, Eshunna e Hitita – multas eram aplicadas por abrigar escravos fugitivos.[25] Alguns afirmam que isso era uma melhora. Bem, um tipo de melhora. Nestes cenários “melhorados”, o escravo ainda era meramente uma propriedade e os acordos de extradição do antigo Oriente Próximo ainda exigiam que o escravo retornasse ao seu mestre. E não apenas isso, mas o escravo voltava às condições severas que o impeliu a fugir a principio. Mesmo as leis revisadas no primeiro milênio Antes de Cristo, a Babilônia incluía indenização ao proprietário (ou talvez algo mais severo) por ocultar um escravo fugitivo. Ainda, os escravos que retornavam eram desfigurados, incluindo ter os lóbulos de suas orelhas fendidas e ser marcado.[26] Este não é o tipo de melhora para ser publicado tão amplamente! Sim, tendências positivas e melhoras morais ocorreram nas leis do Oriente Próximo antigo. Mas vimos repetidamente uma diferença moral geral, digna de nota, entre a lei de Moisés e os códigos legais do Oriente Próximo antigo.
Mais uma coisa: embora alguns afirmem que o escravo fugitivo em Deuteronômio 23 não era um estrangeiro, mas um israelita, temos muitas razões para rejeitar esta ideia. Por uma coisa, nenhuma menção da palavra irmão ou vizinho é usada. Somando-se a isso, segundo Levítico 25, os israelitas não foram permitidos escravizar seus companheiros israelitas. O escravo fugitivo estrangeiro também poderia escolher livremente um lugar para viver em Israel (“em vosso meio”, “em uma de vossas cidades” [Dt 23:16]), diferente do resto dos israelitas que tinham que estar na terra repartida pelos clãs (cf. Números, Josué). Assim, aqueles que eram beneficiados não eram da elite da sociedade, mas pessoas estrangeiras vulneráveis, marginalizadas no meio de uma sociedade completamente diferente. Além disso, os israelitas entravam na servidão voluntariamente ao passo que os escravos fugitivos teriam se tornado escravos contra suas vontades. Assim, se um escravo estrangeiro recebia proteção de um mestre severo, quanto mais os israelitas.[27]
Sumário dos comentários
Na segunda palestra inaugural de Abraão Lincoln (em 4 de Março de 1865) encontramos estas palavras familiares com respeito ao Norte e ao Sul [dos EUA]:
Ambos leem a mesma Bíblia e oram ao mesmo Deus e ambos invocam a ajuda de Deus contra o outro. Pode parecer estranho que alguns homens devem ousar pedir exatamente a assistência de Deus ao espremer seus pães do suor das faces de outros homens, mas não nos deixe julgar para que não sejamos julgados. As orações de ambos não podem ser respondidas. Nenhum dos dois lados tem sido respondido plenamente. O Todo Poderoso tem seus propósitos.[28]
Sim, certamente ambos os lados leram a mesma Bíblia e buscaram apoio divino para vencer seus oponentes. No entanto, a associação comum da crítica acerca das leis de servidão de Israel com as leis do antebellum do Sul [dos EUA] é completamente equivocada. Podemos afirmar plenamente que se as três leis claras do Antigo Testamento tivessem sido seguidas no Sul [dos EUA] – ou seja, as leis antissequestros, anti mutilação e as que proibiam que os escravos voltassem aos seus antigos mestres em Êxodo 21: 15-16 e 24:7 – então a escravidão não teria surgido na América.
Se você tivesse que escolher entre a servidão em Israel e a escravidão em outras culturas do antigo Oriente Próximo, uma pessoa em sã consciência escolheria Israel todas às vezes. O modelo de servidão contratada não era ideal, mas as leis de Israel refletiram uma grande sensibilidade moral do que as leis contemporâneas do antigo Oriente Próximo.
Em sua clássica Theology of the Old Testament, Walther Eichrodt resume bem o contraste:
As normas dadas no livro dos Pactos (Êxodo 20-23) revela alterações radicais na prática legal, quando comparado com os livros legais relacionados do antigo Oriente Próximo. Na avaliação das ofensas contra a propriedade, no tratamento dos escravos, na fixação da punição por ofensas indiretas e na rejeição da punição por mutilação, o valor da vida humana é reconhecido como incomparavelmente maior do que todos os valores materiais. A característica dominante nele [no livro] é o respeito pelos direitos de tudo o que tem uma face; e isso significa que a visão que predominava em todos os lugares foi abandonada e novos princípios foram introduzidos na prática legal. Em última análise, isto só é possível por causa da profundidade da visão até então inimaginável da nobreza do homem, que é agora reconhecida como uma consideração obrigatória para a conduta moral. Consequentemente, mesmo os direitos dos estrangeiros mais humildes são colocados sob a proteção de Deus; e se ele é também dependente, sem os direitos legais completos, oprimi-lo é como oprimir a viúva e o órfão, uma transgressão digna de punição, que suscita a retribuição vingadora de Deus.[29]
Em Israel, os servos contratados (escravos) deveriam ser tratados como seres humanos – não como coisas – e eles eram protegidos dos “abusos desumanos”.[30] Na lei do Antigo Testamento, embora houvesse uma distinção social entre um servo e uma pessoa livre, o servo certamente era protegido pela lei. Abusar de um servo resultaria na libertação dele. No sétimo ano, o servo seria livre do débito e capaz de batalhar por si mesmo em seu novo status como uma pessoa livre. Embora houvesse algumas leis de libertação no antigo Oriente Próximo, o contraste entre as leis de Israel e outras leis são mais notáveis do que as semelhanças. “Os israelitas tinham seis anos de trabalho?” o crítico pergunta. “Hamurabi permitia apenas três!” Geralmente falando, embora no antigo Oriente Próximo o “direito de alforria de um escravo [ser posto em liberdade] pertencia exclusivamente ao dono do escravo.”[31]
O código de Hamurabi e outros códigos legais do antigo Oriente Próximo acentuaram a distinção de classes e a legislação correspondia aos escravos, pessoas livres, oficiais do governo, sacerdotes e assim por diante. Estas leis antigas do antigo Oriente Próximo eram completamente contrárias ao Antigo Testamento não hierárquico. Em Israel, mesmo os reis como Davi ou Acabe não estavam acima da lei. De fato, quando eles foram culpados de assassinar Urias e Nabote (respectivamente), os profetas de Deus os confrontaram por tirar a vida inocente de dois cidadãos comuns. (Embora os reis Cananeus assumiram que a terra pertencia a eles e a suas famílias reais, Nabote sabia que a terra pertencia a Deus, que Ele deu graciosamente para as famílias israelitas usar.)[32] Embora Deus não tenha usado o sistema judicial de Israel sobre os reis, ele certamente não deu um passe livre a estes reis. Deus trouxe severos julgamentos repetidas vezes diretamente contra os agressores reais dos crimes abomináveis e infidelidade ao pacto. Deus dividiu o reino por causa da idolatria de Salomão (1 Reis 11: 13); Ele enviou lepra em Uzias (2 Crônicas 26: 19); Ele enviou Manassés ao exílio (2 Crônicas 33: 10-11); e a lista prossegue. Estes incidentes ilustram o que Levítico 19: 15 ordena: “Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça.”, sejam a reis ou pessoas comuns.
Sim, o tratamento dos servos (escravos) em Israel não tinha paralelo no antigo Oriente Próximo:
Nenhuma outra lei no antigo Oriente Próximo foi encontrada que considere um mestre responsável pelo tratamento de seus próprios escravos (como distinto de injúria feita a escravo de outro mestre) e a lei contrária universal com respeito a escravos fugitivos era que eles deveriam ser enviados de volta, com severas penalidades para aqueles que falhassem em obedecer.[33]
Embora as leis de Israel sobre a servidão não foram o ideal moral, elas mostram muito mais sensibilidade moral do que outros textos antigos do Oriente Próximo. Ao fazer, elas destacam o ideal de Deus lá de trás, no começo: todos os seres humanos são portadores da imagem de Deus (Genesis 1: 26-27). Contrário ao que Christopher Hitchens e Sam Harris dizem, a servidão em Israel dificilmente pode ser chamada de “uma permissão para o tráfico de seres humanos” ou um meio de tratar as pessoas como “equipamentos agrícolas”. Não, a intenção final de Deus não era para os seres humanos “manter escravos”.[34] De fato, o ideal de Genesis é que todos os seres humanos são iguais e que eles não trabalhem para outros; antes, cada pessoa debaixo dos cuidados de Deus sendo seu próprio “mestre”, sentado debaixo de sua própria vinha e figueira (1 Reis 4:25; Miquéias 4:4; Zacarias 3:10).[35]
Fonte: COPAN, Paul. Is God a Moral Monster? Making sense of The Old Testament God. Grand Rapids, MI: Baker Books, 2011, pp. 124-134
Tradução Walson Sales
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Sugestão de leitura adicional:
Chirichigno, Gregory C. Debt-Slavery in Israel and the Ancient Near East. JSOT Supplement Series 141. Sheffield: University of Sheffield Press, 1993.
Goldingay, John. Old Testament Theology III: Israel’s Life. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009. Veja especialmente as páginas 458-75.
Wright, Christopher J. H. Old Testament Ethics for the People of God. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2004.
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Notas:
[1] Frederick Douglas, Narrative of the Life of Frederick Douglas, an American Slave (New York: Spark Publishing, 2005), 20.
[2] Harriet Beecher Stowe, A Key to Uncle Tom’s Cabin; presenting the facts and Documents upon which the Story Founded, together with Corroborative Statements verifying the Truth of the Work (Boston: John P. Jewett, 1853), I.10, 139.
[3] David W. Galenson, “Indentured Servitude”, em The Oxford Companion to American History (New York: Oxford University Press, 2001), 368-96.
[4] John Goldingay, Old Testament Theology: Israel’s Life. Vol 3. (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), 460.
[5] Douglas K. Stuart, Exodus, New American Commentary 2 (Nashville: B & H Publishing, 2008), 474-75.
[6] Goldingay, Israel’s Life, 461.
[7] em alguns dos meus comentários sobre a servidão em Israel em me baseio em Tikva Frymer-Kenski, “Anatolia and the Levant: Israel” A History of Ancient Near East Law, Vol. 2, Ed. Raymond Westbrook (Leiden: Brill, 2003).
[8] Veja Gregory C. Chirichigno, Debt-Slavery in Israel and the Ancient Near East. JSOT Supplement Series 141. (Sheffield: University of Sheffield Press, 1993), 351-54.
[9] veja Gordon Wenham, “Family in the Pentateuch”, em Family in the Bible, Ed. Richard S. Hess and Daniel Carrol (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), 21.
[10] J. A. Motyer, The Message of Exodus (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005), 239.
[11] Peter Garnsey, Ideias of Slavery from Aristotle to Augustine (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 1.
[12] John I. Durham, Exodus, World Biblical Commentary 3 (Waco: Word, 1987), 321.
[13] John L. Hartley, Leviticus, World Biblical Commentary 4 (Dallas: Word, 1992), 429. O código de Hamurabi fez provisão dos escravos endividados.
[14] Gordon McConville, Grace in the End: A Study in Deuteronomic Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1993), 148.
[15] Christopher J. H. Wright, Walking in the Ways of the Lord (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1995), 124.
[16] Muhammad A. Dandamayev, s.v. “Slavery (Old Testament)”, em Anchor Bible Dictionary, vol. 6, Ed. David Noel Freedman (New York: Doubleday, 1992).
[17] Ibid.
[18] Frymer-Kenski, “Anatolia and the Levant: Israel”, 1007.
[19] Laws of Hammurabi §282. Veja também Elizabeth Meier Tetlow, Women, Crime, and Punishment in in Ancient Law and Society, vol. 1, The Ancient Near East (New York: Continuum, 2004).
[20] Sobre esta característica singular veja Christopher J. H. Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2004), 292.
[21] Laws of Hammurabi §170-71.
[22] Estou me referindo a Hector Avalos (“Yahweh Is a Moral Monster”, em The Christian Delusion, Ed. John Loftus [Amherst, NY: Prometheus, 2010]), que geralmente se engaja nesse tipo de argumento obliquo. Apesar de suas acusações Ad Hominem do meu viés “religioso” ou minha pesquisa baseada na “fé”, a questão única é a da evidência e da argumentação. Como se vê, o próprio tom e seletividade dos argumentos de Avalos certamente o qualifica como um verdadeiro “anti religioso” e de ser “anti fé”.
[23] Goldingay, Israel’s Life, 470.
[24] Laws of Mammurabi §16.
[25] Laws of Lipit-Ishtar §12; Laws of Eshunna §49-50; Hittite Laws §24.
[26] Joachim Oelsner, Bruce Wells, and Cornelia Wunsch, s.v. “Neo-Babylonian Period”, em A History of Ancient Near Eastern Law, ed. Raymond Westbrook (Leiden: Brill, 2003), 2:932.
[27] David L. Baker, Tight Firsts or Open Hands? Wealth and Poverty in Old Testament Law (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 133-34.
[28] Esta e outras palestras de Lincoln estão disponíveis em http//www.lincolnbicentennial.gov.
[29] Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament, vol. 1, tradução J. A. Baker (London: SCM Press, 1967), 321.
[30] Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament, vol. 1, tradução J. A. Baker (London: SCM Press, 1961), 77-82.
[31] Muhammed A. Dandamayev, s.v. “Slavery (ANE)”, em Anchor Bible Dictionary, 6:61.
[32] Bruce K. Waltke, An Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 2007), 721.
[33] Wright, Old Testament Ethics, 292.
[34] Sam Harris, Letter to a Christian Nation (New York: Alfred A. Knopf, 2006), 14.
[35] Goldingay, Israel’s Life, 460-62.