É o horror que nunca termina. Seis milhões de pessoas morreram no Holocausto. Talvez seja mais tolerável – confortável? – pensar nesse número absurdo em bloco. De uma maneira abstrata, criando uma massa anônima. Mas esses milhões de homens e mulheres, adultos e crianças, idosos, tinham uma identidade, um rosto – e uma história. A Chave de Sara, que estreou sexta, abriu no começo de agosto o 15.º Festival de Cinema Judaico. Poucos dias depois, entrou em cartaz o polêmico Melancolia, de Lars Von Trier. Melancolia teria suscitado discussões por sua estética – de alguma forma, criou-se uma oposição entre o filme do dinamarquês Von Trier e A Árvore da Vida, de Terrence Malick, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em maio.
Mas Von Trier fez aquelas declarações pró-nazistas, de que compreendia e admirava Adolf Hitler e isso foi o estopim para que a polêmica sobre seu novo filme extrapolasse a estética. Um vendaval de críticas se abateu sobre Von Trier. Muita gente tentou argumentar que o destempero verbal faz parte da persona do autor. Disseram que nada, em sua obra, justifica a etiqueta de nazista, que lhe foi colada. A culpa foi da imprensa, que fez sensacionalismo em torno do assunto. Essas pessoas – críticos? – queriam que o assunto fosse minimizado, quem sabe varrido para baixo do tapete, como tantos esqueletos escondidos nos armários. O próprio Von Trier percebeu o exagero, tentou se desculpar, mas o estrago estava feito.
Vamos logo esclarecendo que A Chave de Sara não é tão bom quanto Melancolia, mas é importante. O diretor Gilles Paquet-Brenner é de ascendência judaica. Queria falar sobre o Holocausto. Seu avô, um judeu alemão, casado com uma francesa, morreu nos campos de extermínio. Como ignorar o inominável? Paquet-Brenner sempre quis contar sua história, mas, como disse em entrevista ao Estado, nunca quis ser autobiográfico. E ele lembrou Roman Polanski, que esperou muitos anos para encontrar o viés para também reconstituir sua experiência no gueto de Cracóvia (em O Pianista). Paquet-Brenner encontrou a história que queria contar no livro de Tatiana de Rosnay.
Ela se tornou a autora mais vendida da França justamente pelo livro que inspirou A Chave de Sara. Uma jornalista, Kristin Scott Thomas, investiga uma das páginas mais sinistras da história do colaboracionismo francês, durante a 2.ª Guerra. Em 16 e 17 de junho de 1942, 13 mil judeus de Paris foram retirados de sua casas e reunidos no Vel d’Hiver, o velódromo da cidade. Dali, entregues aos nazistas pelo governo de Vichy, foram enviados para os campos de extermínio. Kristin – a personagem chama-se Júlia – investiga o assunto para uma reportagem. Descobre personagens, Sara e seu irmão pequeno. Descobre mais – o envolvimento da família do marido. O filme é sobre culpa, responsabilidade, sobre o momento em que ambas convergem. Grandes documentaristas, como Claude Lanzmann (Shoah) e Marcel Ophuls (Le Chagrin et la Pitié), fizeram documentários que se tornaram clássicos, sobre o Holocausto e o colaboracionismo. Louis Malle, pela mesma época, os anos 1970, tratou o colaboracionismo em chave de ficção, em Lacombe Lucien.
Na entrevista ao Estado, Paquet-Brenner explicou que não é historiador nem jornalista. Ele entende o ponto de vista de Claude Lanzmann, que veio ao Brasil e exibiu seu monumental Shoah no Festival de Cinema Judaico. Lanzmann acha que não se deve tratar o Holocausto como ficção. Paquet-Brenner, pelo contrário, admite que não saberia tratar do Vel d’Hiver nem da história de Sara como documentário. E nem queria – seu desejo era fazer com que o espectador compartilhasse a culpa de Sara, a responsabilidade de Júlia, que pode lhe custar o casamento. O filme tem suspense, emoção. Alguns críticos acham que tem emoção demais. Um pouco de sobriedade seria bem-vindo. A sobriedade, a bem da verdade, está na interpretação premiada de Kristin Scott Thomas, que eleva a qualidade (e a voltagem) de A Chave de Sara.
No Brasil, desde o Festival Judaico, a crítica tem sido reticente com o filme. Nos EUA e no Japão, A Chave de Sara faturou elogios e bilheterias massivas – o sucesso nos cinemas norte-americanos bateu o recorde da Piaf de Marion Cotillard. Paquet-Brenner lembra que, quando Marcel Ophuls fez seu documentário – em 1971 -, muita gente que havia colaborado com os nazistas em Clermond Ferrand, durante a guerra, ainda estava viva. E ninguém tinha interesse em que a história fosse (re)contada. Hoje, ele conta a história do Vel d’Hiver para uma nova geração que não viveu os fatos nem se comprometeu. Na França, a comoção foi grande – e A Chave de Sara reabriu o debate sobre um tema até hoje incômodo, o colaboracionismo. É um tema forte, mas o que faz do filme uma experiência insustentável é a tragédia individual do irmão de Sara. O que ocorre com ele é mais que doloroso. De volta ao início do texto. O horror do Holocausto parece não ter fim.
Fonte: http://www.estadao.com.br