A ofensiva para reformar os regimes mais opressores
Entre mais de meia centena de países com maioria muçulmana, apenas três nações adotaram regimes com características democráticas: Turquia, Bangladesh e Indonésia. Com exceção da Turquia, no entanto, nenhum governo islâmico seria reconhecido como democrata pelos padrões ocidentais. Eles são governados por teocracias, monarquias absolutas, ditaduras de partido único e presidentes perpétuos. Mesmo na Turquia a situação é bastante diferente se comparada às democracias ocidentais. Na fundação do país sobre as ruínas do Império Otomano, o Estado tornou-se laico na marra: foram impostas roupas ocidentais, o uso do véu feminino em repartições e escolas públicas foi proibido e o alfabeto árabe foi substituído pelo latino no prazo recorde de seis meses. Os militares turcos trataram de impedir, desde então, que os fundamentalistas chegassem ao poder – na única vez em que isso ocorreu, na década de 90, eles caíram um ano depois de assumir o governo. O Estado supervisiona a educação religiosa, nomeia os 80.000 clérigos do país e paga seus salários. Mesmo assim, o islamismo continua forte. De cada dez turcos, nove fazem o jejum no mês do Ramadã e metade reza cinco vezes por dia para Alá.
A esperança de democracia no Oriente Médio se assenta principalmente na multiplicação dos muçulmanos moderados. Esses personagens não oferecem perigo ao Ocidente. Eles são, no entanto, uma ameaça para os regimes totalitários da região – que ganharam a tolerância do Ocidente por tanto tempo justamente por combaterem os extremistas – na verdade, oprimindo qualque voz forte de oposição. Serão necessárias centenas de milhares deles em dezenas de países para que a química explosiva da região encontre um mínimo de equilíbrio. Para muitos analistas ocidentais, essa possibilidade não passa de uma utopia. Mas todos concordam que a única barreira real de longo prazo para deter o terrorismo religioso são os moderados islâmicos. A eficiência dos serviços de contenção dos radicais prestados por regimes totalitários pró-ocidentais na região está se exaurindo. Essa tendência deve acentuar-se com a presença dos Estados Unidos no Iraque, na exata medida em que os americanos sejam bem-sucedidos na instalação de um governo minimamente representativo no país que já foi de Saddam Hussein e seus asseclas.
Maldição do petróleo – Se no mundo islâmico em geral a democracia é raridade, nos países árabes ela inexiste. Segundo especialistas, a dificuldade de criar regimes democráticos em países árabes decorre de fatores históricos e culturais, mas se agrava hoje em dia em razão de dois aspectos. De um lado, existe um estado permanente de beligerância, pela vizinhança com Israel, o que tende a concentrar o poder nas mãos de um líder ou de um grupo. O constante clima de guerra, além disso, torna prioridade o fortalecimento do Exército, do serviço de inteligência, da polícia secreta, da guarda nacional, instituições que também servem para conter aspirações populares malvistas pelos dirigentes.
De outro lado, a comunidade árabe é dividida pela glória e pela desgraça do petróleo. Quem tem senta-se sobre ele. Quem não tem usa sua influência junto aos países ricos em petróleo para garantir investimentos e ajuda externa. Assim, tanto os com-petróleo quanto os sem-petróleo, excessivamente amarrados à dependência de capital externo, tendem a ignorar as demandas internas por maior participação política. “A principal barreira à democracia no mundo árabe não é o islamismo ou a cultura árabe. É o petróleo”, diz o jornalista Fareed Zakaria, jornalista da revista Newsweek e professor da Universidade Harvard. “Como bastava furar o chão para o dinheiro jorrar, não houve a necessidade de criar uma economia capitalista moderna, que exige trabalho duro. Costumo dizer que o petróleo é a maldição do mundo árabe. Pelo menos no que diz respeito à modernização econômica e política. De todos os países com petróleo, apenas um, a Noruega, é democrático.”
Sinais de mudança – Na avaliação de outro importante especialista no assunto, o escritor Bernard Lewis, os exemplos de democracia no mundo islâmico são “raros, mas não impossíveis”. “É um processo lento e difícil. Não podemos esquecer que generalizações são sempre imprecisas. Quando discutimos o Islã, estamos falando de mais de catorze séculos de história, mais de cinqüenta países, uma tradição cultural de uma diversidade enorme. O Islã pode ser interpretado de várias formas”, diz ele. É inegável que os sinais de mudança estão aparecendo. Além dos casos do Iraque e do Afeganistão, em que os americanos investem pesado para estimular a democracia, e do Irã, onde o rígido regime islâmico não impediu uma onda de apoio popular às reformas democráticas, há vários episódios animadores:
• Horas depois da queda da capital iraquiana, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, anunciou sua desistência de fazer o filho, Gamal, seu sucessor no poder. O Egito está submetido a variações de estado de sítio desde 1931 e seus principais órgãos de imprensa são estatais. Portanto, o gesto de Mubarak tem um peso.
• O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdul Aziz, anunciou em 2003 o desencadeamento de um plano de “aprimoramento econômico e político” que, segundo Alkebsi, prevê a eleição de um Parlamento. Monarquia religiosa, a Arábia Saudita é o país formalmente mais alinhado com o Ocidente na região. Mas existem evidências desconcertantes de que, nos bastidores, a dinastia saudita dá sustentação a grupos terroristas. O aceno com a possibilidade de eleger um Parlamento é a melhor notícia ventilada daquele lado do deserto há dezenas de anos.
• Em setembro de 2002, o Marrocos promoveu as primeiras eleições livres de sua história. A ida às urnas foi fiscalizada por monitores internacionais. Um partido ligado ao clero islâmico ganhou um bom número de cadeiras no Parlamento, e o governo reconheceu oficialmente o resultado.
• Também no fim de 2002, o Barein, um pequeno país do Golfo com menos de 1 milhão de habitantes, convocou eleições gerais em que, pela primeira vez, as mulheres também puderam votar e se candidatar a cargos eletivos.
Do Iraque à Suíça – A empolgação sobre a possibilidade de espalhar a democracia pelo mundo islâmico contagia os ocidentais, mas os próprios defensores da ideia de que vale a pena semear democracia no deserto alertam para os perigos. O mais evidente deles é o fato de que naturalmente os políticos com ligações com o clero islâmico serão, pelo menos no primeiro momento, os mais populares. Há possibilidade também de que os radicais sejam os mais votados e até que cheguem ao poder pelo voto. Na Argélia, em 1992, os militares deram um golpe preventivo assim que as pesquisas não deixavam mais dúvidas de que os fundamentalistas chegariam ao poder nas eleições gerais daquele ano. O que fazer nesses casos?
Esse é um ponto crucial, pois, se os eleitores dos países árabes suspeitarem que a democracia só vale quando forem eleitos políticos com simpatia pelo Ocidente, todo o processo ficará desmoralizado. “Não esqueçamos que Adolf Hitler chegou ao poder na Alemanha por meio de uma eleição. Se a democracia for introduzida de forma prematura, é possível que tenha vida curta”, afirma Bernard Lewis. “Uma eleição livre é o fim de um processo de democratização, não o começo. A democracia é um remédio forte que tem de ser tomado em doses pequenas e com cuidado. Não se pode importar a democracia como quem compra um brinquedo com instruções no estilo monte você mesmo. O Iraque não vai transformar-se numa Suíça da noite para o dia.”
Fonte: Revista Veja