Dois tipos de pesos são algo detestável para Jeová, e uma balança fraudulenta não é boa. — Provérbios 20.23.
Isso talvez ajude a entender o raciocínio de alguns membros no caso de outras circunstâncias prevalecentes no México virem a ser reexaminadas. Em resultado da revolução mexicana, e em razão da longa história da Igreja Católica de deter imensas extensões de terra e outras propriedades no país, a constituição mexicana proibia, até recentemente, a qualquer organização religiosa o direito de possuir bens imóveis. As igrejas e os bens da igreja eram, de fato, mantidos sob custódia pelo governo, que permitia o uso destes pelas organizações religiosas. Devido à exploração no passado por parte de clérigos estrangeiros, não se permitia aos missionários ou ministros estrangeiros exercer tal função no México. Qual foi o resultado disto para a organização das Testemunhas? A administração da sede da organização das Testemunhas de Jeová decidiu muitas décadas atrás, em função da lei existente, que as Testemunhas de Jeová do México se apresentariam, não como uma organização religiosa, mas como uma organização “cultural”. A corporação local aí formada, La Torre del Vigía, foi assim registrada junto ao governo do México.18 De modo que as Testemunhas de Jeová, durante muitas décadas, não falavam em ter reuniões religiosas ou reuniões bíblicas mas em ter reuniões “culturais”. Nestas reuniões, elas não tinham orações ou cânticos, e isto também se aplicava ao caso de assembleias maiores. Quando se empenhavam na atividade de casa em casa, carregavam somente literatura da Torre de Vigia — que diziam ser provida pela Sociedade Torre de Vigia — como uma “ajuda para eles em sua atividade cultural”. Não levavam a Bíblia durante tal atividade, pois isso os identificaria como se empenhando em atividade religiosa. Um grupo de Testemunhas de determinada área não era chamado de “congregação”, mas de “companhia”. Não falavam em ter batismos, mas referiam-se à mesma coisa chamando-a de realizar o “símbolo”. Não se usava esta “linguagem dupla” por morarem em algum país totalitário que tomava medidas repressivas contra a liberdade de adoração.19 Fazia-se isso principalmente para escapar de ter de cumprir com os regulamentos do governo referentes à posse de bens imóveis por parte de organizações religiosas. Não se deve pensar que o arranjo fosse algo inventado e decidido pelas próprias Testemunhas mexicanas. Era um arranjo desenvolvido e posto em prática pela sede internacional em Brooklyn.
É interessante contrastar a eliminação deliberada de orações e cânticos nas reuniões de Testemunhas no México com a postura da Sociedade nos Estados Unidos, onde estavam dispostos a lutar, caso após outro, em todas as instâncias até a Suprema Corte do país, em vez de abrir mão de certas práticas, tais como oferecer literatura de porta em porta sem autorização e sem ter de registrar-se na polícia, do direito de usar carros de som, distribuir literatura nas esquinas das ruas, e muitas outras práticas que são abrangidas pelos direitos constitucionais. A organização não queria renunciar a nenhuma destas coisas. Lutou para garanti-las, apesar de estes métodos específicos não serem coisas certamente utilizadas pelos cristãos primitivos do primeiro século e não poderem ser, portanto, contados como estando entre as práticas cristãs primárias. Todavia, a oração congregacional ou em grupo era uma prática religiosa primária nas reuniões cristãs primitivas e o tem sido entre os servos de Deus desde tempos imemoriais. As Testemunhas de Jeová, no entanto, eram instruídas a dizer que suas reuniões não eram religiosas. Poucas coisas poderiam ser vistas como mais plenamente relacionadas com a adoração a Deus, como mais puramente espiritual, que a oração. Quando um decreto imperial na Pérsia proibiu a oração a qualquer pessoa, com exceção do rei, por um período de trinta dias, o profeta Daniel considerou a questão tão crucial que arriscou o cargo, os recursos e a própria vida por violar o decreto. A sede da organização considerou, entretanto, conveniente sacrificar a oração congregacional entre as Testemunhas de Jeová por todo o México. Com que benefício, com que “vantagem de crescimento”? Por abrir mão da oração e cântico congregacionais e do uso da Bíblia na atividade pública de testemunho, a organização podia conservar a posse dos bens da Sociedade no México e funcionar livre dos regulamentos governamentais a que outras religiões se submetiam. Estavam dispostos a dizer que a sua organização não era uma organização religiosa, que as suas reuniões não eram reuniões religiosas, que a sua atividade de testemunho não era uma atividade religiosa, que o batismo não era um ato religioso — quando em qualquer outro país do mundo as Testemunhas de Jeová estavam dizendo exatamente o contrário. (Para informação adicional, veja o Apêndice.) Já que eles sabiam deste arranjo, alguns membros do Corpo Governante talvez tenham ficado inclinados a aceitar o pagamento de suborno por documentos falsificados como não estando tão fora dos limites da diretriz geral para as Testemunhas de Jeová nesse país. Isto talvez explique, em parte, como eles podiam, enquanto isso, falar tão inflexivelmente contra “transigência” em outros países. Parece evidente que, na mente de alguns membros, não se trata de uma questão de critério duplo. Essa é a norma: fazer o que quer que a organização decida e aprove. A organização tomou decisões com relação ao México e à prática de suborno lá, deixando-a a cargo da consciência individual e, portanto, isso é aceitável, um homem pode pagar tal suborno por um certificado militar e ainda ser usado nas maiores responsabilidades, sem nenhuma necessidade de preocupação especial diante de Deus por parte dos que dirigem a obra lá. A organização decidiu de modo diferente com relação ao serviço alternativo (como fez também com relação à situação em Malaui), e, portanto, qualquer homem que deixe de seguir essa decisão é indigno de ocupar absolutamente qualquer cargo na congregação, é de fato um violador da integridade para com Deus. Eu não conseguia então entender como cristãos podiam adotar tal ponto de vista e nem consigo entender agora. Para mim, isso fez com que todos os apelos impetuosos, quase estridentes, de alguns, para que se ‘mantivessem limpos do mundo’ soassem vazios, como pura retórica, como linguagem impressionante que não se ajustava à realidade. Não podia, de maneira alguma, identificar-me com o raciocínio que admitia tais expressões a despeito de fatos que eram bem conhecidos por todos os membros que proferiam e ouviam essas declarações. Vivi em países latino-americanos por quase vinte anos e não paguei nenhum suborno. Mas sei muito bem que existem alguns lugares, não só na América Latina, mas em várias partes da terra, onde, apesar de a lei estar do seu lado e de aquilo que você procura ser perfeitamente legal, é quase impossível resolver certas coisas sem dar dinheiro a um funcionário que não tem o direito de recebê-lo. Não é difícil ver que uma pessoa, confrontada com esta situação, possa encará-la como uma forma de extorsão, como até nos tempos bíblicos, cobradores de impostos e também militares podiam exigir mais do que era devido e, assim, praticar extorsão. Não me parece justo julgar, de maneira adversa, pessoas que se achem obrigadas a se submeterem a tal extorsão. Mais que isso, não tenho a presunção de julgar aqueles no México que, não tendo a lei do seu lado, agiam contra a lei, que não se submetiam simplesmente a extorsão, mas que, em vez disso, faziam solicitação deliberada de ações ilegais a um funcionário, por meio da oferta de dinheiro, a fim de obterem um documento falsificado, ilegal. Não é isto o que eu achava tão chocante e até atemorizante no caso todo. É, sobretudo, a maneira pela qual homens de elevada autoridade podem admitir que supostos “interesses organizacionais” sejam considerados como de tamanha importância, quando comparado com interesses de pessoas comuns, pessoas com filhos, lares e empregos, indivíduos, muitos dos quais dão evidência de serem tão escrupulosamente conscienciosos em sua devoção a Deus, como qualquer um desses homens que se sentam como que num tribunal para decidir o que está e o que não está dentro do domínio da consciência de tais pessoas. É ver homens de autoridade, que atribuem a si mesmos o direito de manter uma opinião dividida, mas que exigem uniformidade de todos os demais; homens que expressam desconfiança quanto a outros fazerem uso da liberdade da consciência cristã, mas esperam que esses outros depositem confiança implícita neles e em suas decisões, enquanto concedem a si mesmos o direito de exercer sua consciência por tolerar manobras ilegais e uma óbvia representação enganosa da realidade. É presenciar homens de autoridade que, por causa da mudança de um voto que reduz a maioria de 66 % para 62½ %, estarem dispostos a permitir que se mantenha em vigor uma norma que pode fazer com que outros homens sejam submetidos à prisão, separados da família e do lar por meses, ou até mesmo mandados para o cárcere por anos, quando esses homens não compreendem a base bíblica da norma que se lhes manda seguir e crêem, em alguns casos, que a norma está errada. É o fato de homens de autoridade poderem aplicar uma norma que exorta pessoas comuns, homens, mulheres e crianças, a enfrentarem a perda do lar e propriedades, espancamentos, tortura, estupro e morte por causa da recusa de pagar uma taxa legal em troca de uma carteira da organização que, para todos os efeitos, é a autoridade governante de seu país, ao passo que dizem, ao mesmo tempo, a homens de outro país que é aceitável para eles subornarem funcionários militares em troca de uma carteira que declara falsamente que cumpriram com seu serviço militar e que são reservistas de primeira classe do exército. É tudo isto o que acho chocante. E, não importa quão sinceros alguns possam ser, eu ainda acho tais coisas assustadoras. Particularmente, eu não conseguia compreender como homens adultos podiam deixar de ver inconsistência em tudo isto, conseguiam deixar de sentir repulsa diante disso, podiam deixar de comover-se profundamente pelos seus efeitos nas vidas das pessoas. Afinal, isso simplesmente me convenceu de que a “lealdade organizacional” pode levar as pessoas a conclusões incríveis, permitir-lhes desfazer pelo raciocínio, as mais torpes das iniquidades, livrá-las de serem pessoalmente afetadas por qualquer sofrimento que suas normas possam causar. O efeito anestésico que a lealdade à organização é capaz de produzir, está, sem dúvida, muito bem documentado, tendo sido demonstrado vez após vez através dos séculos, tanto na história religiosa como na política, pelos casos extremos da Inquisição e durante o regime nazista. Mas ainda pode produzir um efeito doentio quando vista de perto numa área em que alguém jamais esperou. No meu entender, isso ilustra de modo muito forte o motivo pelo qual nunca foi do propósito de Deus que os homens exercessem autoridade tão excessiva sobre seus semelhantes.
Extraído do livro CRISE DE CONSCIÊNCIA DE RAYMOND FRANZ, PÁGINAS 167-172 EM PDF