Pode um autêntico cristão perder a salvação? Arminianos dirão que sim ao passo que calvinistas e batistas particulares dirão que não. Ambos afirmam estar fundamentados escrituristicamente. No entanto, os textos usados pelo segundo grupo não são definitivos. A meu ver, o Novo Testamento trata do tema sentenciando que alguém nascido de novo pode sim perder a salvação, inclusive de maneira irreversível (Hb 6.4-6).
Jesus Cristo e o assunto em questão
Nos Evangelhos encontramos o Senhor Jesus Cristo versando sobre o assunto de maneira bem clara. Ele apresenta um relevante apoio ao pensamento calvinista. Expressões como “que nenhum eu perca” (Jo 6:39), “jamais perecerão” (Jo 10:28), “tenha a vida eterna” (Jo 3:36) sustentam, pelo menos a princípio, o pensamento dos teólogos de tradição reformada (calvinistas).
Eu admito a relevância de referências como a de João 10:28. Porém, observando o contexto imediato, verificamos que essas “ovelhas” precisam, cotidianamente, ouvir eseguir ao Bom Pastor (v. 27), caso contrário, elas se desgarrarão para longe… Os verbos “ouvem” (akouei) e “seguem” (akolouthousin) estão no tempo presente e só podem indicar uma atividade necessariamente cotidiana. Disso, depreendo que o desleixo quanto a essa atividade necessária pode redundar em resultados diferentes de contextos salvíficos. Então, pergunto: é certo que elas, as “ovelhas”, não podem deixar de ouvir e de seguir ao Bom Pastor? Creio que não. Explico. Se Jesus Cristo apenas tivesse tratado do assunto em pauta apontando somente para a impossibilidade da perda de salvação, poderíamos responder a pergunta com um sim, mas o Senhor falou do contrário. Em João 15:4-6 ele diz:
Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira; assim nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam.
Bom, acho não existir dúvidas de que os interlocutores de Jesus sejam os seus discípulos – discípulos convertidos de fato.
Com esta alegoria Jesus deixa claro que a sentença uma vez salvo, salvo para sempre não é bíblica. O texto é claro ao afirmar que o ramo infrutífero será cortado. A maneira como o ramo se torna estéril é não permanecendo ligado à videira. Não permanecer ligado à videira é um resultado de deixar de ouvir e de seguir o Bom Pastor (10:27). O palavra grega para permanecer é o verbo meno que significa permanecer em umdeterminado local com uma expectativa relacional. Esta passagem mostra a responsabilidade humana. Jesus ensina aos seus discípulos que recai sobre eles a responsabilidade de continuarem ligados à videira.
Com o que fora dito até agora deparamo-nos com duas verdades: 1ª) É vontade de Deus que ninguém pereça; 2ª) Mas isso não depende apenas de Deus [não por qualquer fraqueza divina, mas por uma escolha Soberana dEle], mas também do discípulo que deve permanecer ligado à videira.
Quando lemos “e, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos se esfriará” (Mt 24:12), e “mas aquele que perseverar até ao fim será salvo” (24:13) e “ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus” (Lc 9:62), vemos reforçada a idéia de que é dever do discípulo “guardar a coroa” depois que Deus o salva e estende-lhe diariamente o seu divino auxílio.
Frente ao exposto, concluo que Jesus Cristo promete segurança e proteção sim aosnascidos de novo, mas isso se efetiva mesmo à medida que o discípulo ouve e segue(coisa que podem deixar de ser feitas) a Sua voz. São essas atitudes que os fazempermanecer em Cristo e que os livra de serem cortados e lançados no fogo.
Paulo e o assunto em questão
O apóstolo Paulo também falou sobre a possível perda de salvação de um crente genuíno. Ele discorreu sobre isso de várias maneiras.
Em Romanos 14:15 Paulo diz: “… por causa da tua comida não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu.” O verbo em negrito, no grego, é apollumi que frequentemente é usado indicando condenação eterna (2Co 2:15; 2Ts 2:10). Ele pode ser traduzido por “arruinar”, “destruir completamente”. O uso desse verbo intenso indica uma real possibilidade de perda de salvação.
O teólogo calvinista William Hendriksen comenta Romanos 14:15:
O apóstolo está, por assim dizer, intuindo: Pondere bem no que você está fazendo! Esse seu irmão é tão querido de Cristo, que este morreu por ele. Entretanto, você, por meio de sua conduta destituída de fraternidade, está tratando-o de uma maneira que, não fora pela graça irresistível de Deus, o destruiria. Pare imediatamente de agir dessa maneira, e aja da maneira oposta! (2001, p. 610)
Hendriksen admite que o versículo trata de uma destruição completa da fé alheia por parte daquele que não leva em conta o ensino paulino. No entanto, ele dá um “jeitinho” para ajustar o versículo à sua crença de uma vez salvo, salvo para sempre, concluindo que o apóstolo, em seu ensino, só não conta com a real destruição eterna do discípulo por causa da graça irresistível de Deus. O problema desse comentário de Hendriksen é que Paulo, definitivamente, não levanta essa questão. O apóstolo é objetivo e taxativo: “não faças perecer”.
O teólogo Daniel B. Pecota diz o seguinte sobre algumas interpretações calvinistas: “parece que os calvinistas às vezes apelam a métodos tortuosos, na exegese e na hermenêutica, a fim de evitar as implicações de outros textos neotestamentários.” (1996, p. 376)
No versículo 20 o apóstolo diz: “não destruas a obra de Deus por causa da tua comida…” A obra de Deus aqui é o “irmão mais fraco” (ver v. 15 e 21). O verbo destacado no grego é kataleo e está no presente imperativo. Rienecker e Rogers dizem que “o presente imperativo com uma negação indica a descontinuação de uma ação em progresso” (1995, p. 280). Ou seja, a fé do “irmão mais fraco” estava sendo, ou poderia ser, minada e o fim da mesma seria a ruína total.
Em 1ª Coríntios 8:11 o mesmo apóstolo diz: “E assim, por causa do teu saber, perece o irmão fraco, pelo qual Cristo morreu.” Novamente ele usa o verbo apollumi. O teólogo Bruce Winter comenta:
Esse cristão seria destruído, pois voltaria às atividades pagãs em decorrência da atitude daqueles cristãos que comiam no templo dedicado a ídolos para provar que um ídolo nada significava. (2009, p. 1766)
Ora, voltar “às atividades pagãs” é voltar ao pecado; voltar ao pecado implica na destruição da fé, fato esse que redunda, inexoravelmente, na perda da salvação. O apóstolo Pedro pinta em cores fortes esse quadro assim:
… se, depois de terem escapado das contaminações do mundo mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, se deixam enredar de novo e são vencidos, tornou-se o seu último estado pior que o primeiro. Pois, melhor lhes fora nunca tivessem conhecido o caminho da justiça, do que, após conhecê-lo, volverem para trás, apartando-se do santo mandamento que lhes fora dado. Com eles aconteceu o que diz certo adágio verdadeiro: o cão voltou ao seu próprio vômito; e: a porca lavada voltou a revolver-se no lamaçal.” (2Pe 2:20-22)
Uma falácia dos defensores da crença uma vez salvo, salvo para sempre
O teólogo calvinista Wayne Grudem diz que “só aqueles que perseverarem até o fim realmente nasceram de novo” (1999, p. 659). Considero essa afirmação uma falácia porque ela não leva em conta a maneira como veem os escritores canônicos àqueles a quem eles afirmam terem perdido a salvação ou que podem vir a perdê-la.
Em Romanos 14:15 e 1ª Co 8:11 o apóstolo Paulo fala de autênticos cristãos, pois ele diz, respectivamente, “não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu” e “perece o irmão mais fraco”. No caso do texto petrino em foco, alguém poderá afirmar que o autor não fala de um autêntico cristão que “voltou ao seu próprio vômito”? Em 2ª Pedro 2:20-22 não há nenhuma indicação de que o autor está a falar de pseudo cristãos. Ele fala sobre uma escape “mediante o conhecimento do Senhor”. A palavra em destaque, no grego, é epignosis, que significa não apenas “conhecimento”, mas “pleno conhecimento”.
E o que dizer de Hebreus 6:4-6? Tal escritura fala a respeito de verdadeiros crentes que “caíram, sim, [e que] é impossível [grifo meu]outra vez renová-los para arrependimento…”? Ainda posso citar Gl 5:4, 1ª Tm 4:1, 2ª Tm 2:12, Hb 3:6, 12, 2ª Pe 2:1, etc., textos que de maneira nenhuma fazem-nos pensar em supostos crentes.
Considerações finais
Sou um arminiano como denuncia minha exposição acima. Acredito que a salvação é uma obra da graça de Deus livre e independente das obras dos crentes. No entanto, o homem precisa cumprir com algumas condições para perseverar-se nela. A força dos textos bíblicos citados me impedem de pensar diferente. Também, acredito ser mais honesto, intelectualmente falando, conciliar os textos bíblicos que tratam da segurança e proteção divina dos crentes com a proposição da responsabilidade humana quanto à conservação de sua salvação, do que afirmar que aqueles a quem a Bíblia chama de crentes que se desviaram, ou que podem desviar, não são, ou não foram, pessoas que realmente experimentaram a regeneração.
Talvez, seja melhor para os calvinistas falarem de pseudo cristãos porque isso ajuda-os a manter “vivas” as doutrinas da eleição e reprovação como admitidas por eles. Porém, isso não é ser fiel às Escrituras. Ser fiel às Escrituras é dar vazão a tudo o que ela diz sobre um determinado assunto segundo a maneira como ela o trata.
Por Pr Zwinglio Rodrigues
Referências
CARSON, D. A. (org.) Comentário Bílbico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2009.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
HORTON, Stanley M. (org.) Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova, 1995.