Em artigo publicado no jornal francês “Le Monde”, o jornalista Louis Imbert refuta a ideia de que o Alcorão proíba a representação de Maomé, como tem sido amplamente divulgado durante a cobertura do ataque ao “Charlie Hebdo”. Exemplos históricos mostram como o Profeta tem, sim, sido representado em diversas épocas e lugares, embora com restrições surgidas ao longo do tempo.
Leia abaixo o texto completo publicado no diário francês:
Em que condições o Islã autoriza a representação do Profeta?
“Tudo está perdoado”, e o Profeta Maomé em lágrimas carrega também uma placa “Eu sou Charlie”. A última capa do “Charlie Hebdo” é um novo desenho do Profeta. E traz de novo a pergunta sobre a representação da principal figura do islã, e da figura humana em geral na tradição islâmica.
O que dizem os textos
O Alcorão não proíbe a representação do Profeta nem a representação humana em geral. Escrito numa sociedade na qual a imagem é geralmente ausente (a Península Arábica do século VII), o texto só menciona isso uma vez: “O vinho, os jogos de azar, os ídolos são abominações inventadas por Satã. Abstenham-se.” Essa palavra “ídolos”, literalmente “pedras vestidas” (“Ansàb”), designa as estátuas pagãs.
A Suna, o conjunto de palavras e ações de Maomé, uma grande parte distinta do Alcorão ordenada e escrita entre os séculos VIII e IX, também não proíbe a representação do Profeta. Mas ela define uma atitude desconfiada em relação à representação dos humanos e dos animais. Essas imagens são suspeitas, associadas aos ídolos. Assim, no conjunto dos ditos de Mohammed Al-Bukhari (810-870), três atitudes são possíveis a respeito disso: tolerá-las, mas se abster de produzi-las, condená-las ou destruí-las. Este artigo detalha os episódios na vida do Profeta tirados dos ensinamentos nos quais a tradição se baseia para banir as imagens dos locais de culto.
O erro de quem faz as imagens está em imitar o trabalho de Deus: ele pretende infundir uma alma à matéria moldada. Ele forma uma criação paralela à de Deus. “Isso faz com que, no século XIX, com algumas exceções wahhabitas [uma doutrina radical nascida no século XVIII, oficial no reino da Arábia Saudita], todos os teólogos aceitem a fotografia e o cinema. Eles apenas reproduzem o que Deus já criou”, explica Silvia Naef, professora do departamento de estudos árabes da universidade de Genebra.
Uma tradição de representações fora das mesquitas
O rito exclui então as imagens, como no judaísmo ou no cristianismo: não são encontradas dentro das mesquitas. Mas isso não impede as pessoas de tê-las em casa ou de pendurá-las na rua, no espaço profano.
As paredes do palácio dos califas omíadas de Damasco (661 – 750), as residências aristocráticas e os banheiros são ornamentados com cenas de caça, de figuras humanas e animais. Encontram-se em seguida numerosas representações humanas, assim como figuras sagradas e mesmo do Profeta são encontradas mais tarde na Índia do período mongol, no Império Otomano e na Pérsia, do século XIII ao XVIII. Elas figuram entre as crônicas, obras literárias, poesia, obras místicas…
De acordo com a historiadora de arte Christiane Gruber, o Profeta aparece na miniatura persa em uma série de configurações estereotipadas. A representação clássica o mostra sobre um trono, rodeado de anjos e seus companheiros. Ele também pode ser representado com os Profetas anteriores ao advento do Islã. Essa imagem, tirada de um livro persa do século XIV, explicando a vida dos Profetas (“Qisas al-Anbiya”), mostra uma visão do Profeta Isaías: Jesus (o Islã o considera um Profeta) e Maomé cavalgando lado a lado.
Maomé ainda poderia ser representado em textos relatando a jornada do Profeta (Mi’raj) de Meca a Jerusalém e através das esferas celestes: nós o vemos sentado no Domo da Rocha em Jerusalém, reunido com os Profetas.
A partir do século XVI, ele começou a ser representado sem rosto, com um véu branco o encobrindo. Ele também pode ser rodeado por uma aureola, um círculo de chamas, símbolos que enfatizam a santidade de sua face. Christiane Gruber interpreta essas imagens como um reflexo de uma tendência mística que, em seguida, percorre o Islã, associando Maomé à “luz profética,” em vez de uma proibição explícita de teólogos. Hoje encontramos este modo de representação, entre outros exemplos, nos livros de educação religiosa ilustrados para crianças no Irã.
Imagens religiosas, populares, representam o Profeta no Irã
A partir do século XIX, as imagens proliferam em todo o mundo muçulmano. No Irã, entre os xiitas, (com o sunismo, uma das duas principais vertentes do Islã, minoritário no mundo, majoritário no Irã), se difundem imagens religiosas. Elas podem representar Maomé e os doze imãs: Ali, o filho do Profeta e seus herdeiros. As faixas que os representam são brandidas nas ruas de Bagdá ou Teerã no dia da Ashura, quando se relembra o martírio de Imã Hussein. As efígies representando Hussein às vezes são levadas em procissão.
Uma representação do imã Ali, no souk Najaf, no Iraque, em outubro de 2013.
Esta imagem surpreendente, vendida atualmente em todo o Irã, ilustra um episódio da adolescência do Profeta, antes de começar a divulgar sua mensagem. Durante uma viagem para o que hoje é a Síria, um monge cristão, Bahira, reconhece no ombro do jovem homem a marca da profecia. O governo iraniano tentou recentemente limitar sua difusão.
“O clero xiita tolera esses objetos de meditação, de devoção popular. No entanto, proíbem de orar na frente deles nas cinco orações diárias ou na de sexta-feira “, explica Sabrina Mervin especialista de xiismo contemporâneo na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais. Assim, no site do grande aiatolá Ali al-Sistani, a maior autoridade xiita no Iraque, aparece uma fatwa (decreto religioso) dizendo que o Profeta pode ser representado, mas não ofensivamente.
O mundo sunita, no entanto, mostra-se geralmente hostil à representação figurativa do seu Profeta. Assim, a primeira tentativa de representá-lo no cinema, nos anos 1920, no Egito, foi condenada pela mesquita Al-Azar. “Ela veio da tradição de não-representação do Profeta, e da questão: quem poderia representar o seu papel? “, disse Silvia Naef. O Rei Fouad I ameaçou revogar a cidadania do ator que fosse encarnar Maomé.
Hoje, desenhos animados que recontam às crianças os princípios do Islã são produzidos pela Disney, mas sem representar o Profeta e seus companheiros: eles usam um narrador ou figuras simbólicas.
NOTA: Sobre a Idolatria Islâmica, clique aqui e leia
Extraído do site G1 em 17/01/2015