Este último fator que nos leva a crer que Deus possibilita a salvação de todos chama-se amor. Pense, por um momento, que o famoso versículo de João 3:16 tivesse sido escrito assim:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que ele determinou que alguns poucos devessem crer e fossem salvos”
Qualquer pessoa minimamente sensata logo irá perceber que este versículo, embora plenamente compatível com a ótica calvinista, corrompe não apenas o versículo original, mas também o sentido do verso original. Quando a Bíblia diz que Deus “amou o mundo de tal maneira”, a expressão “de tal maneira” nos leva a crer em algo grande, magnífico, em uma completa expressão de amor. Mas a expressão seguinte, que diz que Deus possibilitou a salvação apenas de alguns poucos, se contrapõe a esta visão de amor universal, declarada no início do verso.
É por isso que Calvino disse Deus impede o acesso à salvação a muitos, e que os árduos problemas que ele reconhece existirem só podem ser explicados pela “eleição”:
“Porque, se é notório que pelo arbítrio de Deus suceder que a salvação é oferecida gratuitamente a uns, enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma, se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição e predestinação”[1]
Um calvinista logo irá perceber que nós estamos mais uma vez apelando para o amor de Deus e irá lançar mão do argumento de que Deus não tem a mínima obrigação de salvar a todos, que o homem chegou àquela condição por sua própria culpa e que não há nada no homem que o faça merecer a salvação. Tudo isso é verdade. Se analisarmos a questão apenas pela ótica da soberania, Deus não teria nenhuma razão para oferecer salvação a todos. Se analisarmos pela ótica arminiana, o homem pecou por sua própria culpa e responsabilidade. E, de fato, concordamos que não há nada no homem que o faça merecedor da salvação.
Mas espere. Embora tudo isso seja verdade e que não haja nada no homem para que este mereça a salvação, há algo em Deus que o move a oferecer salvação a todos indistintamente. E isto que está em Deus e que o leva a estender suas mãos ao homem perdido, ainda que não seja rigorosamente obrigado a isso e mesmo que o homem tenha caído por sua própria culpa, chama-se amor.
Deus amou o mundo de tal maneira que, mesmo sem ser obrigado a isso, ainda que o homem tenha caído em ruína por sua própria culpa, e não obstante que não haja nada no homem que mereça a salvação, ele decidiu enviar Seu Filho unigênito para oferecer salvação a todos, a fim de que todo aquele que nele crê seja salvo. Norman Geisler apresenta esse mesmo conceito dentro de uma analogia ilustrativa. Ele disse:
“Suponhamos que um fazendeiro descubra três garotos afogando-se numa lagoa de sua propriedade, onde há cartazes indicando claramente que é proibido nadar ali. Em seguida, percebendo a patente desobediência, diz ele consigo mesmo: ‘Eles violaram a proibição, e trouxeram sobre si mesmos as conseqüências merecidas pela desobediência’. Poderíamos, talvez, concordar com o raciocínio, até este ponto. Contudo, se o fazendeiro prosseguir, dizendo: ‘Portanto, não farei qualquer esforço para salvá-los’, imediatamente imaginaríamos que está faltando alguma coisa em seu amor. Suponhamos, então, que por qualquer capricho inexplicável ele diria o seguinte: ‘Não tenho a mínima obrigação de salvar um deles, mas por mera bondade de meu coração salvarei um deles e deixarei os outros dois afogar-se’. Em tal caso, certamente diríamos que o amor deste homem é parcial. É certo que não é este o quadro que encontramos na Bíblia”[2]
Infelizmente, este fazendeiro e seu amor parcial é o reflexo do que os calvinistas pensam a respeito de Deus e seu amor limitado a alguns. Como Laurence Vance bem observa, o Deus calvinista é tipicamente como aquele sacerdote e aquele levita que passaram pelo homem caído no chão e quase morto, mas não fizeram nada a respeito dele:
“O Deus do calvinista é como o sacerdote e o levita que ‘passaram de largo’ pelo homem ‘meio morto’ na parábola do bom samaritano (Lc 10.31-32). E pior ainda, Deus também seria como os salteadores que ‘o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto’ (Lc 10.30). Dizer que, porque Deus voltou e ‘moveu-se de íntima compaixão, e, aproximando-se, atou-lhe as feridas’ (Lc 10.33-34), ele devia ser louvado por sua graça e misericórdia é absurdo. Sobre o samaritano que ‘aproximou-se’ (Lc 10.34), o Senhor ordenou: ‘Vai, e faze da mesma maneira’ (Lc 10.37). Certamente o Senhor pratica o que recomenda”[3]
O Deus calvinista é como o sacerdote e o levita da parábola. Vê o homem caído no chão, quase morrendo, e passa dali sem tomar nenhuma providência a respeito, e sem oferecer salvação àquele homem, por não ter sido um “eleito”. Na verdade, o Deus calvinista também determinou que os salteadores passassem por ali e espancassem aquele homem, como vimos no capítulo sobre o determinismo.
Já o Deus bíblico é como aquele samaritano que passou por ali e atou-lhe as feridas, sem se importar se aquele homem era “eleito” ou “não-eleito”, a despeito de qualquer eleição arbitrária na eternidade. O Deus bíblico amou o mundo todo de tal maneira que ofereceu a salvação para todos, e não para alguns. Ele não é com alguns o que o sacerdote e levita eram na parábola, e com outros o que o samaritano era na parábola. Ele é como o bom samaritano para com todos, indistintamente.
Ele pratica aquilo que ele ordena que nós pratiquemos. Ele não é como alguém que nos manda fazer uma coisa mas faz outra. Não é como o “siga o que eu digo, mas não siga o que eu faço”. Ele realmente é o exemplo a ser seguido, e seus ensinamentos nada mais são do que o reflexo de seu caráter perfeito. Como Walls e Dongell assinalam, “torna-se sem sentido alegar que Deus quer salvar a todos ao passo que insistimos que Deus se abstém de tornar a salvar possível a todos. O que devemos fazer com um Deus que pede para que façamos aquilo que ele mesmo não faz?”[4]
Geisler corretamente observa que os calvinistas analisam apenas o atributo da justiça de Deus, à parte do atributo do amor. Ele disse:
“Deus é mais que justo; também é todo-amoroso. E verdade que todos são condenados com justiça por causa de seus pecados. Mas é errado presumir que um atributo de Deus (justiça) opere isolado de outro (amor). Não havia nada no ser humano pecaminoso que justificasse qualquer tentativa de salvá-lo, mas havia alguma coisa em um Deus sem pecado que fez isso (a saber, seu infinito amor)”[5]
Olson também pergunta: “Que amor se recusa a salvar aqueles que poderiam ser salvos, uma vez que a salvação é incondicional? Que compaixão se recusa a prover pela salvação quando ela poderia ser fornecida?”[6] Para Geisler,se o calvinismo é verdadeiro, então a verdadeira razão pela qual alguém é condenado é porque Deus não a ama. Ele disse:
“Segue-se, em análise final, que a razão pela qual alguns vão para o inferno é que Deus não os ama e não lhes dá o desejo de ser salvos. Mas, se a razão real pela qual vão para o inferno é que Deus não os ama, não os regenera irresistivelmente e não lhes dá a fé para que creiam, então a falha deles em crer resulta verdadeiramente da falta de amor de Deus por eles”[7]
Essa é uma conclusão difícil de ser tolerada, mas é onde deveríamos chegar no caso da graça divina ser realmente como os calvinistas imaginam que ela seja.
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[1] Institutas, 3.21.1.
[2] GEISLER, Norman. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 90-91.
[3] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[4] Walls and Dongell, Why I Am Not a Calvinist, p. 55.
[5] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 250.
[6] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 79.
[7] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 55-56.
Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook
A reforma protestante foi uma cousa muito boa para nós, infelizmente os reformadores posteriormente pecaram: um foi anti-semita e outro um tirano, cujos escritos foi livro de cabeceira de Hitler, este julga-se “predestinado” por ter escapado ileso de tantos atentados à sua vida.