É virtualmente impossível encontrar um livro calvinista que não cite alguma coisa de Romanos 9 pelo menos cem vezes. Aquilo que a Terra Santa representa para judeus e islâmicos, Romanos 9 representa para os calvinistas. É difícil dimensionar a importância única que Romanos 9 representa para eles, pois este é o único capítulo da Bíblia em que algum escritor inspirado parece estar advogando uma doutrina de predestinação particular individual à salvação.
Ele fala sobre Deus amando Jacó e odiando Esaú (v.13), sobre Ele usar de misericórdia sobre quem quer (v.15), sobre isso não depender do esforço humano (v.16), sobre Deus endurecendo o coração do Faraó (v.18) e sobre “vasos de ira” (v.22), preparados para a destruição. Parece chocante para alguém que não possui o resto da Bíblia ou que não analisa Romanos 9 dentro do contexto da própria epístola aos romanos. Isoladamente e sem exegese, qualquer um poderia mesmo pensar que Paulo estava retratando uma predestinação individual e incondicional aqui.
Por essa mesma razão, eu convido todos os leitores a lerem a epístola aos romanos inteira antes de concordar com qualquer coisa que um arminiano ou calvinista escreve sobre Romanos 9. Não se deixe convencer facilmente por um discurso calvinista ou arminiano, faça questão de averiguar o contexto você mesmo. Se você fizer isso, irá descobrir que desde o começo da epístola um dos principais assuntos era a salvação de Israel. Paulo começava um tema, abria um parêntese e retomava esse mesmo tema depois. Era um costume dele, presente em quase todas as suas epístolas, e em especial presente na carta aos romanos.
Sintetizando o contexto:
- Paulo inicia a epístola dizendo que o evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego” (1:16). Ele também diz que “haverá tribulação e angústia para todo ser humano que pratica o mal: primeiro para o judeu, depois para o grego; mas glória, honra e paz para todo o que pratica o bem: primeiro para o judeu, depois para o grego” (2:9-10). Notem que o foco primeiro de Paulo é sempre o povo judeu.
- Depois de dizer que Deus julgará ambos (judeus e gentios), ele responde à pergunta: “Que vantagem há então em ser judeu, ou que utilidade há na circuncisão?” (3:1) da seguinte maneira: “Muita, em todos os sentidos! Principalmente porque aos judeus foram confiadas as palavras de Deus. Que importa se alguns deles foram infiéis? A sua infidelidade anulará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma!” (3:2-4). Em outras palavras, a partir de então ele começa a expor as vantagens de ser judeu. Ele abre um parêntese para tratar da questão do pecado, do capítulo 3 ao 8, mas retoma este mesmo assunto mais adiante, no capítulo 9.
- No capítulo 9, Paulo retoma o assunto das vantagens do povo judeu. Ele lamenta pelos israelitas que se tornaram incrédulos, dizendo: “Digo a verdade em Cristo, não minto; minha consciência o confirma no Espírito Santo: tenho grande tristeza e constante angústia em meu coração. Pois eu até desejaria ser amaldiçoado e separado de Cristo por amor de meus irmãos, os de minha raça, o povo de Israel” (9:1-3).
- Em seguida, ele expõe mais uma vez as vantagens dos judeus, dizendo que “deles é a adoção de filhos; deles é a glória divina, as alianças, a concessão da lei, a adoração no templo e as promessas. Deles são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem humana de Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre!” (9:4-5).
- Depois disso, ele responde a um interlocutor oculto que pode pensar que essas promessas de Deus ao povo judeu falharam, e que eles perderam a eleição e seu lugar na glória, já que muitos deles rejeitaram a Cristo. Ele, então, diz: “Não pensemos que a palavra de Deus falhou. Pois nem todos os descendentes de Israel são Israel” (9:6). Ele prossegue dizendo que os judeus que creem em Cristo são descendentes de Abraão assim como os gentios que também creem, permanecendo neles a eleição. Ou seja: que a eleição de Israel permanece subsistindo no “Israel da promessa”, em contraste ao “Israel da carne” (9:6-8).
- Para reforçar este ponto, ele traça uma analogia entre Israel e Ismael. Embora ambos fossem descendentes naturais de Abraão, Deus decidiu fazer seu pacto somente com os descendentes de Isaque (9:7-9). O mesmo ocorreu com os filhos gêmeos de Rebeca. Embora tanto Jacó como Esaú fossem descendentes naturais de Isaque, Deus decidiu estabelecer seu pacto somente com a descendência de Jacó (9:10-13). Estes exemplos foram ilustrativos para mostrar que, já nos tempos do Antigo Testamento, Deus era soberano para escolher com quem ele iria querer fazer um pacto.
- Depois de refutar a ideia de que Deus seria injusto por escolher soberanamente com quem estabeleceria um pacto (9:14-22), ele conclui a ideia de que, como Deus é soberano para estabelecer seu pacto com quem ele quiser, ele decidiu estender um novo pacto para os “filhos da promessa”, em uma Nova Aliança que abrange todos os que creem, tanto dos judeus como dos gentios (9:24-33).
- Ele segue dizendo que deseja a salvação de Israel: “Irmãos, o desejo do meu coração e a minha oração a Deus pelos israelitas é que eles sejam salvos” (10:1), e diz que “Deus não rejeitou o seu povo” (11:1), porque “eu mesmo sou israelita, descendente de Abraão, da tribo de Benjamim” (11:1). E então, no verso seguinte, ele diz:
“Deus não rejeitou o seu povo, o qual de antemão conheceu. Ou vocês não sabem como Elias clamou a Deus contra Israel, conforme diz a Escritura?” (Romanos 11:2)
Como vemos, estes que ele “de antemão conheceu” trata-se do povo de Israel, que, no conceito paulino, agora abrangia não a totalidade da descendência natural de Abraão, mas os filhos da promessa, que inclui judeus e gentios que creem. Ele acrescentou as palavras “de antemão conheceu” como uma referência a Amós 3:1-2, que diz que de todas as famílias da terra Deus só conhecia a Israel:
“Ouvi esta palavra que o Senhor fala contra vós, filhos de Israel, contra toda a família que fiz subir da terra do Egito, dizendo: De todas as famílias da terra só a vós vos tenho conhecido; portanto eu vos punirei por todas as vossas iniquidades” (Amós 3:1,2)
Assim sendo, para Paulo, as promessas e o pacto de Deus com Israel na Antiga Aliança permaneciam subsistindo na Igreja, naqueles judeus e gentios que creem, sendo receptores das promessas a Abraão. Os que ele “de antemão conheceu”, que antes se aplicava apenas aos israelitas segundo a carne, agora se aplica aos israelitas da promessa, e neles permanece a eleição de Israel. Todo o foco da questão se resume ao fato de que a eleição de Israel não foi revogada, mas se cumpre na Igreja. Não tem nada a ver com uma predestinação fatalista individual de uma pessoa na eternidade.
Diante de todo o contexto da epístola, podemos perceber claramente que o tema de Romanos 9 não era sobre uma predestinação individual de algumas pessoas à salvação, e sim sobre a irrevogável eleição de Israel. Os calvinistas tiram grosseiramente Romanos 9 do seu contexto para enganar a mente dos mais ingênuos para que eles pensem que o assunto ali tratado era a predestinação individual de um ser humano na eternidade, o que é um crime contra a exegese. Somente incautos podem se deixar convencer por uma interpretação tão rasa, que desrespeita todo o contexto da epístola aos romanos.
Paulo não está dizendo que eu ou você fomos individualmente predestinados ao Céu e que outras pessoas foram rejeitadas por ele, mas sim que Israel foi escolhido pelo Senhor e que Deus não revogou essa eleição, pois ela permanece no “Israel de Deus” (Gl.6:16), a Igreja. Todos os versos de Romanos 9 giram em torno disso, e por essa razão iremos analisar parte por parte, para confirmarmos essa interpretação lógica e contextual que derruba as pretensões calvinistas.
•Jacó e Esaú
A passagem mais utilizada de Romanos 9 na defesa da predestinação individual é certamente o verso 13, que diz que Deus amou Jacó mas “odiou” Esaú[1]. A maioria dos calvinistas hoje interpreta este texto como se tratando da própria pessoa de Jacó e de Esaú, contrariando a interpretação ortodoxa histórica de que Jacó ali era uma representação do povo de Israel e Esaú dos edomitas. Uma prova evidente de que Paulo estava tratando das nações de Jacó (Israel) e Esaú (Edom) é que desde o Gênesis isso já era aceito. Deus disse à Rebeca:
“Disse-lhe o Senhor: ‘Duas nações estão em seu ventre, já desde as suas entranhas dois povos se separarão; um deles será mais forte que o outro, mas o mais velho servirá ao mais novo’” (Gênesis 25:23)
Paulo tirou a analogia de Jacó e Esaú de uma aceitação comum entre os hebreus de que Jacó representava a nação de Israel e Esaú representava a nação de Edom, tradição esta que já provinha desde o Gênesis. Observando isso, Norman Geisler disse:
“Deus não está falando aqui do indivíduo Jacó, mas a respeito da nação de Jacó (Israel). Em Gênesis, quando a predição foi feita (25.23), foi dito a Rebeca: ‘Duas nações estão em seu ventre, já desde as suas entranhas dois povos se separarão; (…) o mais velho servirá ao mais novo’. Assim, a referência aqui não é à eleição individual, mas a uma eleição coletiva, de uma nação – a nação escolhida de Israel”[2]
O próprio texto em que Paulo faz menção, ao dizer que “está escrito” (v.13), se refere não a Esaú como pessoa, mas à nação de Edom. Paulo fazia menção ao texto de Malaquias, que diz:
“Uma advertência: a palavra do Senhor contra Israel, por meio de Malaquias. Eu sempre os amei, diz o Senhor. Mas vocês perguntam: ‘De que maneira nos amaste?’ Não era Esaú irmão de Jacó?, declara o Senhor. Todavia eu amei Jacó, mas rejeitei Esaú. Transformei suas montanhas em terra devastada e as terras de sua herança em morada de chacais do deserto. Embora Edom afirme: ‘Fomos esmagados, mas reconstruiremos as ruínas’, assim diz o Senhor dos Exércitos: Podem construir, mas eu demolirei. Eles serão chamados Terra Perversa, povo contra quem o Senhor está irado para sempre. Vocês verão isso com os próprios olhos e exclamarão: Grande é o Senhor, até mesmo além das fronteiras de Israel!” (Malaquias 1:1-5)
Como vemos, o texto veterotestamentário do qual Paulo faz menção se refere não à pessoa de Esaú ou Jacó, mas às nações, ou seja, seus descendentes. A advertência não era contra Jacó em pessoa (que já havia morrido há séculos), mas contra Israel (v.1). Por isso, Deus diz que sempre os amou, no plural, se referindo a toda a nação. Com Edom é o mesmo que acontece: fomos esmagados, no plural, para se referir a toda a nação e não a Esaú como pessoa. Jacó e Esaú, naquele contexto, eram meras representações das nações de Israel e Edom.
Até mesmo o calvinista J. Oliver Buswell admitiu isso quando disse:
“Neste caso o comentário com que Paulo conclui a referência a Jacó e Esaú coincide com a opinião de que a ‘eleição’ aqui em vista é uma eleição para a linha messiânica, e não uma eleição de um indivíduo para a vida eterna (…) Na passagem de Malaquias da qual Paulo cita estas palavras, o profeta está claramente se referindo não ao indivíduo Esaú, mas ao povo de Edom que tinha sido um povo pecador e rebelde, posto que se permitia que fossem, de acordo com as promessas de Deus, considerados dentro da aliança de Deus com Israel. Não há nada no relato de Gênesis que indica que Esaú, quando Jacó retornou para sua terra natal, não era um sincero adorador”[3]
Outra forte evidência de que Paulo não estava falando da pessoa de Jacó e de Esaú é que o texto diz que Esaú seria servo de Jacó:
“Todavia, antes que os gêmeos nascessem ou fizessem qualquer coisa boa ou má – a fim de que o propósito de Deus conforme a eleição permanecesse, não por obras, mas por aquele que chama – foi dito a ela: ‘O mais velho servirá ao mais novo’. Como está escrito: ‘Amei Jacó, mas rejeitei Esaú’” (Romanos 9:11-13)
O problema para os calvinistas é que Esaú nunca foi servo de Jacó durante a sua vida. Pelo contrário: se alguém pode ter sido considerado “servo” de alguém, foi Jacó de Esaú, e não Esaú de Jacó. Em Gênesis, vemos que Jacó se considerava servo de Esaú:
“Então Esaú ergueu o olhar e viu as mulheres e as crianças. E perguntou: ‘Quem são estes?’ Jacó respondeu: ‘São os filhos que Deus concedeu ao teu servo’” (Gênesis 33:5)
“Esaú perguntou: ‘O que você pretende com todos os rebanhos que encontrei pelo caminho?’ ‘Ser bem recebido por ti, meu senhor’, respondeu Jacó” (Gênesis 33:8)
Jacó tanto se considerava “servo” de Esaú que se prostrou sete vezes ao chão diante dele, algo que somente era feito pelo inferior a um superior, por um servo a um senhor:
“Ele mesmo passou à frente e, ao aproximar-se do seu irmão, curvou-se até o chão sete vezes” (Gênesis 33:3)
Durante a vida de Jacó, Esaú sempre foi o mais rico e poderoso. Esta condição só veio a se reverter com os seus descendentes, os edomitas, que se tornaram servos dos descendentes de Jacó, os israelitas, que de fato vieram a ser muito mais poderosos do que Edom. Portanto, o texto bíblico indubitavelmente está se referindo à nação de Israel (Jacó) e à nação de Edom (Esaú), e não à própria pessoa de Jacó e Esaú, ou senão Paulo estaria invertendo a condição de servo e de senhor, e, consequentemente, cometendo um disparate bíblico. Foi por isso que John Wesley escreveu:
“A passagem é inegavelmente clara, que ambas as escrituras [versículos 12 e 13] tratam, não das pessoas de Jacó e Esaú, mas de seus descendentes; os israelitas; descendentes de Jacó e os edomitas; descendentes de Esaú. Somente neste sentido é que o ‘mais velho’ (Esaú) ‘serviu ao mais novo’; não em sua pessoa (pois Esaú jamais serviu a Jacó), mas em sua posteridade. A posteridade do irmão mais velho serviu a posteridade do irmão mais novo”[4]
Essa interpretação lógica e consistente, de que Paulo não estava se referindo à Jacó como pessoa, mas à nação de Israel (que era o nome de Jacó), foi a interpretação ortodoxa predominante na Igreja por dois milênios, até que em pleno século XXI temos o desprazer de ouvir calvinistas desinformados afirmando que essa interpretação “é uma piada, é uma hermenêutica de cambalhota dizer que Romanos 9 não está falando da pessoa de Jacó e da pessoa de Esaú”[5].
É realmente lamentável que as pessoas não estudem o contexto e falem do que desconhecem. Se o pastor calvinista Thomas Santos (autor desta pérola) estudasse pelo menos os próprios escritos de Calvino (algo que ele com certeza não fez) iria descobrir que até mesmo o próprio Calvino admitia que a referência era aos descendentes de Jacó e Esaú. Ele disse:
“O que se diz: ‘Amei a Jacó’ [Ml 1.2], refere-se a toda a descendência do patriarca, a qual o Profeta aí contrasta com os descendentes de Esaú”[6]
Como vemos, o próprio Calvino reconhecia que a referência era aos descendentes de Jacó. E ele não foi o único calvinista que admitiu isso. Sanday e Headlam disseram que “no original ao qual Paulo se refere, Esaú é simplesmente um sinônimo de Edom”[7]. Na mesma linha, Berkouwer, também calvinista, diz que “está cada vez mais sendo aceito que esta passagem não se trata primeiramente de estabelecer um locus de praedestinatione como uma análise de eleição ou rejeição individual, mas, preferivelmente, [trata de] certos problemas que surgem na história da salvação”[8].
O calvinista Russell P. Shedd é outro que refuta a teoria de que Romanos 9:13 se refere às próprias pessoas (Jacó e Esaú). Ele disse que “não se refere aos indivíduos, mas às nações que surgiram deles. Os edomitas estiveram, por longos períodos, sujeitos a Israel (cf 2 Sm 8.14; 1 Rs 22.47)”[9]. À vista de tudo isso, é uma grande distorção bíblica afirmar que Paulo advogava uma espécie de eleição individual em Romanos 9:13. O assunto, como mostramos diante de todo o contexto, continua sendo a eleição de Israel à luz da soberania de Deus, que tem o direito de escolher com quem ele quer estabelecer um pacto.
•A misericórdia de Deus
O próximo ponto de Paulo em seu discurso de Romanos 9 é se essa eleição corporativa é justa ou injusta. Ele diz:
“E então, que diremos? Acaso Deus é injusto? De maneira nenhuma! Pois ele diz a Moisés: ‘Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão’. Portanto, isso não depende do desejo ou do esforço humano, mas da misericórdia de Deus” (Romanos 9:14-16)
Vimos que Deus decidiu estabelecer um pacto com a descendência de Isaque e não com a de Ismael (vs.7-9) e com a descendência de Jacó e não de Esaú (vs.9-13), que seria um prelúdio da eleição soberana de Deus onde ele, na Nova Aliança, estabelece um Novo Pacto com todos aqueles que creem, inclusive dentre os gentios (vs.24-33). Por acaso Deus seria injusto, por decidir estabelecer um Pacto com um e não com outro? Deus seria injusto por escolher os filhos da promessa ao invés dos filhos naturais (v.8)? A resposta de Paulo é clara: não.
Deus não seria injusto, porque, em primeiro lugar, ele é soberano para escolher com quem estabelecerá um pacto e com quem não estabelecerá. Se Deus escolheu uma nação e não outra, ou um grupo corporativo e outro não, isso faz parte da soberania dele. Mais uma vez, isso não se resume a indivíduos na eternidade. Paulo permanece tratando do mesmo tema, da eleição de Israel. O ponto aqui é que a eleição (corporativa) não depende do esforço humano, mas da misericórdia de Deus.
Abraão não pediu a Deus para que Ele estabelecesse um pacto com seus descendentes. Jacó não fez alguma boa obra enquanto ainda estava no ventre da mãe para que Deus estabelecesse um pacto com a descendência dele e não com a de Esaú. Essa eleição não é de acordo com uma “presciência” de atos futuros, nem por obras, nem depende em nenhuma medida do desejo ou do esforço humano. Depende total e exclusivamente do desejo e da vontade de Deus, unicamente.
Ele não escolheu Israel por prever boas ações ou por ser o melhor de todos os povos; ao contrário, é dito que Israel era a menor de todas as nações, a mais insignificante. A descrição bíblica sobre isso, dita pelo próprio Deus, é impressionante:
“Pois vocês são um povo santo para o Senhor, o seu Deus. O Senhor, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal. O Senhor não se afeiçoou a vocês nem os escolheu por serem mais numerosos do que os outros povos, pois vocês eram o menor de todos os povos” (Deuteronômio 7:6-7)
Essa eleição, de fato, não dependeu do esforço humano. Isso era uma prévia do seu ponto a favor da inclusão dos gentios no grupo corporativo (Igreja). Paulo estava disputando com judeus fanáticos que criam que só os judeus poderiam ser salvos e que Deus não poderia estender a eleição para mais ninguém, somente para os descendentes naturais de Abraão. Eles batiam no peito e diziam com orgulho: “somos os filhos de Abraão” (Jo.8:39).
Para que Paulo mudasse esse conceito de descendência natural em favor da descendência espiritual, era necessário provar que Deus era soberano na história para estabelecer uma aliança com quem ele quisesse, e que isso não depende da vontade do homem, mas somente da misericórdia de Deus. Por isso, se Deus decide estender seu pacto aos gentios através de uma descendência espiritual de Abraão, ele é soberano para tanto e pode fazer conforme desejar. Era este o ponto aqui.
Quando Paulo diz que Deus exerce misericórdia com quem ele quer, ele não está refutando uma posição arminiana de misericórdia disponível para todos, sob a condição de crer (em relação à salvação). Pelo contrário: ele está refutando uma visão de misericórdia limitada propagada entre os judeus de que Deus só poderia exercer misericórdia sobre eles, de modo que nunca a graça se estenderia aos gentios. Se Deus decide manter alguém endurecido (no caso, o Israel da carne), ou exercer misericórdia sobre quem antes não tinha um pacto com ele (o Israel da promessa), ele pode fazer isso sem se tornar “injusto”.
É muito importante ressaltarmos que essa misericórdia, como aponta todo o contexto, diz respeito ao pacto com Deus, que antes somente os israelitas tinham e hoje todos os que creem (de qualquer nacionalidade) possuem. Ela não diz respeito à salvação. Ninguém realmente crê que todos os seres humanos não-israelitas que viveram na época da Antiga Aliança foram para o inferno. Deus estabeleceu uma aliança com Israel, mas não limitou a salvação à Israel. Assim como nem todos os israelitas eram salvos, nem todos os não-israelitas eram não-salvos[10].
Por isso, quando a questão era a misericórdia de Deus em relação à salvação, Paulo deixa bem claro, dois capítulos adiante, que Deus exerce misericórdia sobre todos, e não apenas sobre alguns:
“Pois Deus colocou todos sob a desobediência, para exercer misericórdia para com todos” (Romanos 11:32)
Paulo aqui está falando da misericórdia de Deus através da obra da cruz, em disponibilizar salvação a todos os homens. O “todos”, neste contexto, não pode significar “alguns”, senão quebraria toda a lógica contextual. Os próprios calvinistas creem que todos os homens do mundo, individualmente, pecaram e desobedeceram a Deus. Consequentemente, a sequencia do verso que diz que Deus estabeleceu misericórdia para com “todos” não pode significar outra coisa senão cada pessoa do mundo, aquelas que também estavam incluídas no “todos” que pecaram e desobedeceram a Deus. De outra forma, Paulo estaria dizendo o seguinte:
“Pois Deus colocou todas as pessoas do mundo sob a desobediência, para exercer misericórdia apenas sobre alguns poucos, os eleitos” (Pseudo-Paulo “calvinista”, Aos Arminianos, 11:32)
É lógico que o verso exige que o todos seja todos, sem exceção. Todos, sem exceção, estiveram sob o pecado; e todos, sem exceção, foram alvos da misericórdia de Deus. Portanto, quando a questão era a salvação individual, Paulo era enfático: Deus exerce sua misericórdia para com cada pessoa do mundo, e não apenas para alguns. Mas, quando a questão era a eleição corporativa, essa misericórdia se estendia apenas para alguns: aqueles que Ele quer.
De fato, Deus poderia ter escolhido qualquer outra nação, mas quis escolher Israel. O querer de Deus foi a única coisa que importou neste caso. Deus também poderia, da mesma forma, estabelecer um novo pacto com os mesmos filhos naturais, mas escolheu os filhos da promessa, os que creem, e não os descrentes. Deus foi soberano nesta escolha. A “misericórdia” aqui diz respeito ao pacto corporativo, não de indivíduos à salvação ou à condenação.
É por essa razão que cremos que pessoas não-israelitas poderiam ser salvas no tempo do Antigo Pacto, e pessoas israelitas poderiam ser condenadas também naquela época. Salvificamente falando, a extensão da misericórdia de Deus abrange todas as suas criaturas[11]. Corporativamente e em termos de eleição para um pacto, a misericórdia esteve apenas sobre os israelitas na Antiga Aliança e está apenas sobre a Igreja na Nova Aliança.
•O endurecimento do Faraó
Paulo prossegue seu discurso dizendo:
“Pois a Escritura diz ao faraó: ‘Eu o levantei exatamente com este propósito: mostrar em você o meu poder, e para que o meu nome seja proclamado em toda a terra’. Portanto, Deus tem misericórdia de quem ele quer, e endurece a quem ele quer” (Romanos 9:17-18)
Calvinistas costumam usar este versículo para provar que há certas pessoas “predestinadas” à salvação e que há outras que são “endurecidas”, que eles creem que se refere à predestinação à perdição. Calvino insistentemente fez uso deste versículo na tentativa de provar que os não-eleitos são ativamente endurecidos por Deus durante toda a sua vida para que eles nunca sejam salvos. Outros usam este verso na tentativa de impugnar o livre-arbítrio, dizendo que Deus agiu contra a vontade do Faraó.
Mas será que alguma dessas alegações calvinistas tem cabimento? Seguindo a lógica de Paulo, o que ele estava dizendo era que Deus não tem qualquer necessidade ou obrigação de estabelecer um pacto com todo mundo, mas ele escolhe quem ele quer. Então, Paulo usa o exemplo do Faraó como um caso de alguém que não foi escolhido para uma aliança com Deus. Afinal, quem era o Faraó? Era a autoridade máxima de todo o Egito. Deus preferiu, por sua própria vontade, estabelecer um pacto com Moisés a favor dos israelitas, e não com Faraó a favor dos egípcios. Deus foi soberano e autodeterminante nesta decisão.
Mas isso ainda não resolve a questão do endurecimento. Calvinistas tem usado este verso a favor de uma contra-eleição. Os “endurecidos” seriam aqueles que Deus predestinou ao inferno. Se for assim mesmo, então eles teriam que explicar de que modo que os discípulos de Jesus foram lançados ao inferno, já que a Bíblia relata em certa ocasião que eles estavam com seus corações endurecidos:
“Não tinham entendido o milagre dos pães. Seus corações estavam endurecidos” (Marcos 6:52)
Portanto, se os calvinistas creem que havia “predestinados” (à salvação) entre os discípulos de Jesus, eles terão que abrir mão do argumento de que o endurecimento implica em uma contra-predestinação, ou em uma predestinação à perdição. No mínimo, eles teriam que reconhecer que este endurecimento pode ser algo passageiro, e não permanente, assim como os discípulos que estavam endurecidos naquela ocasião mas tiveram seus corações transformados depois.
Se for assim, então o endurecimento do Faraó em nada favorece uma tese de predestinação incondicional de indivíduos à perdição. Isso é uma exegese de fundo de quintal, que obrigaria, segundo a lógica, a mandar os discípulos de Jesus ao inferno. Faraó poderia ter tido seu coração transformado depois assim como os discípulos tiveram, à exceção de Judas que preferiu continuar endurecido.
Mas isso ainda não responde a uma questão central: de que forma Deus endureceu o coração do Faraó? E isso não atesta contra o livre-arbítrio? Paradoxalmente, é um calvinista que nos dá a melhor resposta (arminiana) sobre isso. R. C. Sproul, calvinista convicto a tal ponto de dizer que os que não são deterministas são ateus, foi o mesmo que ofereceu uma das melhores explicações sobre o endurecimento do Faraó, em plena concordância com o pensamento arminiano, contra aquilo que ele considera “hipercalvinismo”. Ele disse:
“O endurecimento ativo envolveria a intervenção direta de Deus nas câmaras internas do coração do Faraó. Deus irromperia no coração do Faraó e criaria nele um mal adicional. Isto garantiria que Faraó produziria o resultado que Deus estava procurando (…) O endurecimento passivo é uma história totalmente diferente. O endurecimento passivo envolve um julgamento divino sobre o pecado que já está presente. Tudo o que Deus tem a fazer para endurecer o coração de uma pessoa cujo coração já é desesperadamente mau é ‘entregá-la a seu pecado’. Encontramos este conceito de julgamento divino em toda a Escritura”[12]
Depois ele afirma:
“Não é que Deus coloque sua mão sobre elas para criar o mal novo em seus corações; Ele meramente remove delas sua santa mão de restrição, e deixa que façam sua própria vontade (…) Tudo o que Deus tinha a fazer para endurecer mais a Faraó era remover seu braço. As inclinações malignas de Faraó fizeram o restante”[13]
Em outras palavras, o que até mesmo os calvinistas mais sensatos concordam é que este endurecimento do Faraó partiu em primeiro lugar do coração do próprio Faraó, e que Deus apenas “o entregou” a esta condição de endurecimento, o que seria um endurecimento passivo e não ativo. Faraó foi o agente ativo de seu próprio endurecimento.
Mas encontramos este conceito na Bíblia?
Sim, encontramos. Biblicamente, o Faraó endureceu seu próprio coração cinco vezes antes de a Bíblia dizer que Deus o endureceu. Vejamos alguns casos:
“Vendo, pois, Faraó que havia descanso, endureceu o seu coração, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito” (Êxodo 8:15)
“Mas endureceu Faraó ainda esta vez seu coração, e não deixou ir o povo” (Êxodo 8:32)
B. W. Johnson corretamente observa:
“Cinco vezes é dito dele que ele mesmo endureceu, ou tornou pesado seu coração (Êx 7.13; 7.22; 8.15; 8.32; 9.7), antes da vez quando é finalmente dito que Deus o endureceu (Êx 9.12), e mesmo depois disso é dito que ele endureceu a si mesmo (Êx 9.34). Assim ele inicialmente fechou seu próprio coração aos apelos de Deus; ficou mais firme pela resistência obstinada sob os julgamentos de Deus, até que finalmente Deus, como punição por sua rejeição obstinada do direito, entregou-o à sua louca insensatez e afastou seu julgamento”[14]
À luz dos dados bíblicos, a conclusão de Calvino de que “o conselho secreto de Deus é a causa do endurecimento”[15] é completamente errônea. Faraó foi a causa e o responsável pelo seu próprio endurecimento, e Deus apenas o entregou a esta condição. Deus não agiu contra o livre-arbítrio de Faraó, mas através do livre-arbítrio dele. Faraó não era um homem bonzinho, gente do bem, camarada, com um bom coração, cheio de benignidade e compaixão e completamente disposto a deixar que toda a sua mão-de-obra forçada deixasse o seu país porque um escravo egípcio e um fugitivo estavam gentilmente pedindo isso.
Pelo contrário: como alguém já declarou certa vez, o Faraó era o “Hitler” da antiguidade. Ele não tinha um bom coração disposto a deixar livremente que os israelitas fugissem. Deus respeitou o livre-arbítrio do Faraó e o entregou a esta condição. Faraó já era orgulhoso, soberbo e ímpio muito antes de Moisés e Arão começarem toda a história. Foram as suas escolhas que o levaram a isso, e não “o conselho secreto de Deus”. Deus não faz o homem ímpio; o próprio homem que se faz ímpio (Ec.7:29). Deus nunca agiu contrário ao livre-arbítrio do Faraó.
Como disse John Murray, “o endurecimento de Faraó, não esqueçamos, reveste-se de caráter judicial. Pressupõe a entrega ao mal e, no caso de Faraó, particularmente à entrega ao mal de seu auto-endurecimento”[16]. Esta “entrega” da parte de Deus é o mesmo que Paulo escreveu aos romanos, quando disse que “Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos dos seus corações, para a degradação dos seus corpos entre si” (Rm.1:24). Não é que Deus tenha determinado que eles cometessem impureza sexual, mas sim que, por tanto resistirem à graça, esta graça se afastou deles, de modo que agora eles estão “entregues” a este fim.
Norman Geisler e Thomas Howe são outros que tratam desta questão em seu “Manual de Dúvidas, Enigmas e ‘Contradições’ da Bíblia”. Eles escreveram:
“Deus não endureceu o coração de Faraó contrariamente ao que o próprio Faraó por sua livre vontade determinou. A Escritura deixa claro que Faraó endureceu o seu coração. Ela declara que ‘o coração de Faraó se endureceu’ (Êx 7:13), que Faraó ‘continuou de coração endurecido’ (Êx 8:15) e que ‘o coração de Faraó se endureceu’ (Êx 8:19). Novamente, quando Deus enviou a praga das moscas, ‘ainda esta vez endureceu Faraó o coração’ (Êx 8:32). Esta frase, ou uma equivalente, é repetida vez após vez (cf. Êx 9:7, 34-35). De fato, exceto quando Deus o que aconteceria (Êx 4:21), Faraó foi quem endureceu o seu próprio coração em primeiro lugar (Êx 7:13; 8:15 ; 8:32 etc), e só mais tarde Deus o endureceu (cf. Êx 9:12; 10:1, 20, 27). Além disso, o sentido em que Deus endureceu o coração de Faraó é semelhante ao modo pelo qual o sol endurece o barro ou derrete a cera. Se Faraó tivesse sido receptivo às advertências de Deus, o seu coração não teria sido endurecido por Deus. Mas quando Deus dava alívio de cada praga, Faraó tomava vantagem da situação. ‘Vendo, porém, Faraó que havia alívio, continuou de coração endurecido, e não os [a Moisés e Arão] ouviu, como o Senhor tinha dito’ (Êx 8:15)”[17]
Em seguida, eles montam uma tabela onde explicam em que sentido que Deus “endureceu” o coração do Faraó:
DEUS NÃO ENDURECE O CORAÇÃO | DEUS ENDURECE O CORAÇÃO |
Inicialmente | Subseqüentemente |
Diretamente | Indiretamente |
Contra o livre arbítrio da pessoa | Por meio do próprio livre arbítrio |
Como sua causa | Como seu efeito |
Além disso, Laurence Vance faz uma importante observação:
“Se o decreto da reprovação era eterno, o que Deus estava fazendo endurecendo o coração de Faraó no tempo e em várias ocasiões se ele já foi predestinado ao inferno? Ele estava fazendo mais firme sua reprovação e condenação?”[18]
De fato, a questão do “endurecimento do Faraó” é um problema muito maior para os calvinistas do que para os arminianos. Se tudo já foi pré-determinado por Deus na eternidade, então não há qualquer razão ou lógica em endurecer o coração de alguém que já foi predestinado a pecar e a ir para o inferno. Não há como tornar este decreto “mais certo”, e por isso seria inútil qualquer forma de endurecimento ativo em alguém que já estava de qualquer maneira predestinado a tomar aquelas atitudes, e que não poderia fazer nada de si mesmo para lutar contra elas.
É digno de nota que em quase todas as vezes onde a Bíblia mostra alguém “cego” ou “endurecido”, ela coloca o próprio homem como sendo o agente ativo. Lucas, por exemplo, escreveu em Atos:
“Quando Paulo lhes impôs as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e começaram a falar em línguas e a profetizar. Eram ao todo uns doze homens. Paulo entrou na sinagoga e ali falou com liberdade durante três meses, argumentando convincentemente acerca do Reino de Deus. Mas alguns deles se endureceram e se recusaram a crer, e começaram a falar mal do Caminho diante da multidão” (Atos 19:6-9)
Como vemos, os homens causaram seu próprio endurecimento, ao se recusarem a crer, resistindo à graça que lhes era oferecida. Da mesma forma, ele diz:
“E, como ficaram entre si discordes, despediram-se, dizendo Paulo esta palavra: Bem falou o Espírito Santo a nossos pais pelo profeta Isaías, dizendo: Vai a este povo, e dize: De ouvido ouvireis, e de maneira nenhuma entendereis; e, vendo vereis, e de maneira nenhuma percebereis. Porquanto o coração deste povo está endurecido, e com os ouvidos ouviram pesadamente, e fecharam os olhos, para que nunca com os olhos vejam, nem com os ouvidos ouçam, nem do coração entendam, e se convertam, e eu os cure” (Atos 28:25-27)
O texto não diz que Deus lhes fechou os olhos, mas que eles fecharam os seus olhos. Jesus também disse o mesmo, citando o mesmo trecho de Isaías:
“Neles se cumpre a profecia de Isaías: ‘Ainda que estejam sempre ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais perceberão. Pois o coração deste povo se tornou insensível; de má vontade ouviram com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos. Se assim não fosse, poderiam ver com os olhos, ouvir com os ouvidos, entender com o coração e converter-se, e eu os curaria’” (Mateus 13:14,15)
Outras vezes este endurecimento parte de Satanás, mas somente porque encontra um coração receptivo a isso no homem. Por isso Paulo escreve que “o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo” (2Co.4:4). O “deus deste século” é, obviamente, Satanás. Portanto, as pessoas endurecem a si mesmas quando aceitam o endurecimento instigado por Satanás. Deus apenas as entrega a este fim quando, depois de repetidas vezes, elas resistem à graça.
•Os vasos de desonra
Prosseguindo a leitura, Paulo diz:
“Mas algum de vocês me dirá: ‘Então, por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem resiste à sua vontade?’ Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’ O oleiro não tem direito de fazer do mesmo barro um vaso para fins nobres e outro para uso desonroso? E se Deus, querendo mostrar a sua ira e tornar conhecido o seu poder, suportou com grande paciência os vasos de sua ira, preparados para destruição? Que dizer, se ele fez isto para tornar conhecidas as riquezas de sua glória aos vasos de sua misericórdia, que preparou de antemão para glória, ou seja, a nós, a quem também chamou, não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (Romanos 9:19-24)
Paulo começa refutando um interlocutor oculto que poderia pensar que Deus é injusto por escolher uma nação à outra, um grupo à outro, por ditar as regras do jogo. Se Deus escolheu estabelecer um pacto com um grupo e não com outro, por que este que não foi escolhido deve ser considerado culpado? Se não foi da vontade de Deus que ele estabelecesse um pacto com outro povo, ninguém poderia resistir a esta vontade soberana.
Paulo sabia bem as consequências deste pensamento, pois estava prestes a concluir sua argumentação em favor da inclusão dos gentios em um Novo Pacto, a partir de uma descendência espiritual de Abraão, ao invés de uma descendência natural. Mas, se Deus decidiu “endurecer” (entregar ao endurecimento) um grupo de israelitas incrédulos e exercer misericórdia sobre outro grupo (a descendência espiritual de Abraão, que inclui os gentios), ele não estaria sendo injusto por isso?
Paulo já havia respondido essa questão no verso 14, dizendo que “de maneira nenhuma” (v.14) Deus seria injusto por isso. Aqui ele começa refutando este pensamento mostrando que, em primeiro lugar, não somos nada para questionar a Deus (v.20). Em seguida, ele passa a contra-argumentar essa tese, fazendo uma analogia com o oleiro e o vaso. Se o oleiro tem o direito de fazer um vaso para um fim e outro vaso para outro fim, quanto mais Deus teria tal direito.
Isso significa que Deus tem o direito de fazer isso caso quisesse, mas não significa que Deus decidiu agir assim. O verso seguinte (v.22) lança mais luz ao que Paulo estava dizendo, sobre Deus suportar com grande paciência os vasos preparados para a destruição. Isso implica, logicamente, que Deus é longânimo para com eles, “não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe.3:9). Paulo não precisou entrar mais a fundo neste ponto porque ele já havia feito isso no capítulo 2, quando disse:
“Ou será que você despreza as riquezas da sua bondade, tolerância e paciência, não reconhecendo que a bondade de Deus o leva ao arrependimento? Contudo, por causa da sua teimosia e do seu coração obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo, para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento” (Romanos 2:4,5)
Em outras palavras, como Paulo já havia dito a eles, essa paciência e tolerância de Deus, em suportar os incrédulos por muito tempo, tem como finalidade levá-los ao arrependimento. Isso derruba a tese calvinista de que esses vasos de desonra já estavam fadados à morte eterna. Se fosse assim, Deus não estaria buscando levá-os ao arrependimento.
O que Paulo está dizendo é que a razão pela qual Deus é longânimo para com os incrédulos é porque Ele lhes está dando tempo para se arrependerem. Se não se arrependerem, eles serão condenados pela própria “teimosia do seu coração obstinado” (v.5), que se recusa a se arrepender, e não porque Deus os tenha decretado a este fim. Norman Geisler também destaca este texto e diz:
“Essa passagem sugere que os ‘vasos de ira’ são objeto da ira porque se recusam a se arrepender. Eles não estão desejosos de trazer honra a Deus, de forma que se tornam objeto da ira de Deus. Isso é evidente pelo fato de que são suportados por Deus com grande paciência (Rm 9.22). Isso sugere que Deus estava esperando pacientemente por seu arrependimento”[19]
Laurence Vance acrescenta que “vasos são feitos vazios, e trazem honra ou desonra (2Tm 2.20) conforme o que é colocado neles. Deus não cria ninguém honroso ou desonroso”[20]. Em outras palavras, há a possibilidade de que alguém que é um “vaso de desonra” (um incrédulo dentre os israelitas, naquele contexto) se torne um “vaso de honra”, caso se arrependa de seus pecados e creia em Cristo. Há pelo menos outros três textos bíblicos que deixam este conceito claro. Um deles é do próprio Paulo ao escrever a Timóteo, dizendo:
“Numa grande casa há vasos não apenas de ouro e prata, mas também de madeira e barro; alguns para fins honrosos, outros para fins desonrosos. Se alguém se purificar dessas coisas, será vaso para honra, santificado, útil para o Senhor e preparado para toda boa obra” (2ª Timóteo 2:20,21)
Ele não diz que este “alguém” já é um vaso de honra. Ao contrário: diz que caso se purifique dessas coisas (i.e, do pecado) será (verbo no futuro!) um vaso de honra. Isso obviamente implica que um vaso de desonra, que hoje vive no pecado, pode vir a se arrepender e se tornar um vaso de honra. Isso também está nitidamente presente em um texto do profeta Jeremias, onde essa mesma analogia é feita por Deus:
“Esta é a palavra que veio a Jeremias da parte do Senhor: ‘Vá à casa do oleiro, e ali você ouvirá a minha mensagem’. Então fui à casa do oleiro, e o vi trabalhando com a roda. Mas o vaso de barro que ele estava formando se estragou-se em suas mãos; e ele o refez, moldando outro vaso de acordo com a sua vontade. Então o Senhor dirigiu-me a palavra: ‘Ó comunidade de Israel, será que não posso eu agir com vocês como fez o oleiro?’, pergunta o Senhor. ‘Como barro nas mãos do oleiro, assim são vocês nas minhas mãos, ó comunidade de Israel. Se em algum momento eu decretar que uma nação ou um reino seja arrancado, despedaçado e arruinado, e se essa nação que eu adverti converter-se da sua perversidade, então eu me arrependerei e não trarei sobre ela a desgraça que eu tinha planejado. E, se noutra ocasião eu decretar que uma nação ou um reino seja edificado e plantado, e se ele fizer o que eu reprovo e não me obedecer, então me arrependerei do bem que eu pretendia fazer em favor dele’” (Jeremias 18:1-10)
O ponto de Paulo em Romanos 9:21-24 é exatamente o mesmo, incluindo o uso da mesma analogia, de Jeremias 18:1-10. Deus diz que pode remodelar os israelitas assim como o oleiro faz com o vaso de barro, dependendo das atitudes dos próprios israelitas. Em outras palavras, se eles obedecerem a Deus, Ele os converterá em vasos de honra; se, porém, alguém fizer o que Deus reprova, se tornará um vaso de desonra.
Está perfeitamente claro que não havia ideia de um vaso que já está fixamente determinado como sendo de honra ou de desonra, como se Deus tivesse desde a eternidade definido quem estaria no Céu e quem estaria fadado ao inferno. Nenhum vaso já estava predeterminado a ser de honra ou predeterminado a ser de desonra. Os vasos se tornavam de honra ou desonra em função das atitudes de cada um.
Sendo assim, um vaso de honra poderia se tornar de desonra, assim como um de desonra poderia se purificar do pecado e se tornar um vaso de honra. Vance tinha razão quando disse que “quando um homem está reservado, apontado, ou ordenado para condenação, é sempre por causa de algo que ele fez, não por um decreto eterno da reprovação”[21].
A analogia com os vasos de barro é completamente oposta ao que ensinam os calvinistas. Paulo não estava de forma alguma ensinando que Deus determinou na eternidade que alguém seria um vaso de honra e outra pessoa seria um vaso de desonra, e que não há nada que estes vasos possam fazer para mudarem isso. Pelo contrário: à luz do ensinamento tanto do Antigo como do Novo Testamento, tal analogia nos mostra que Deus respeita as livres escolhas do homem para moldar ou remodelar um vaso, de modo que tanto a conversão quanto a apostasia são possíveis.
Os vasos de honra estão “preparados para a glória”, se não se desviarem e se tornarem vasos de desonra. Da mesma forma, os vasos de desonra estão “preparados para a destruição”, se não se arrependerem e se tornarem vasos de honra. É este o conceito bíblico, que difere de forma radical da teologia calvinista, onde vasos de honra e de desonra já são definidos desde a eternidade e são conceitos fixos, imutáveis, que jamais poderão ser remodelados para que se tornem outra coisa, contrariando gritantemente os textos bíblicos (Je.18:1-10; 2Tm.2:20,21; Rm.11:17-24).
Outro texto que nos mostra de forma clara que o conceito de “vaso de honra” ou “vaso de desonra” não é algo fixo está também na mesma epístola aos romanos. Paulo lhes disse:
“Se alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira, não se glorie contra esses ramos. Se o fizer, saiba que não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você. Então você dirá: ‘Os ramos foram cortados, para que eu fosse enxertado’. Está certo. Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema. Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você. Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com você, desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você também será cortado. E quanto a eles, se não continuarem na incredulidade, serão enxertados, pois Deus é capaz de enxertá-los outra vez. Afinal de contas, se você foi cortado de uma oliveira brava por natureza e, de maneira antinatural, foi enxertado numa oliveira cultivada, quanto mais serão enxertados os ramos naturais em sua própria oliveira?” (Romanos 11:17-24 )
Paulo traça aqui outra analogia, que é muito semelhante à analogia dos vasos de barro. Ele deixa claro, mais uma vez, que os que foram “enxertados” e hoje fazem parte do Corpo de Cristo (os vasos de honra) podem ser cortados da mesma forma que os judeus incrédulos (vasos de desonra) foram cortados. Ele também diz que aqueles que foram cortados (vasos de desonra) podem ser enxertados outra vez (tornando-se vasos de honra), se não continuarem na incredulidade.
O quadro comparativo a seguir ilustra bem isso:
EM ROMANOS 9 | EM ROMANOS 11 |
“E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira , preparados para a perdição?” (Romanos 9:22) | “Se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar” (Romanos 11:23) |
“Que dizer, se ele fez isto para tornar conhecidas as riquezas de sua glória aos vasos de sua misericórdia, que preparou de antemão para glória” (Romanos 9:23) | “Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com você, desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você também será cortado” (Romanos 11:22) |
O problema do calvinista é que ele lê tudo de forma isolada, superficial, desrespeitando o contexto e as regras da exegese. Se ele se preocupasse em ler o contexto geral, iria perceber que suas interpretações distorcidas já foram refutadas há muito tempo, pelo próprio apóstolo Paulo, e na mesma epístola aos romanos!
Muita coisa do que Paulo escreveu em Romanos 9 ele já tinha abordado antes ou voltou a abordar depois, explicando melhor suas analogias. Mas o calvinista que tira Romanos 9 grosseiramente do seu contexto e o interpreta de acordo com as lentes da sua teologia não percebe isso. Como consequencia disso, ele comete disparates exegéticos que não se comparam com nada na teologia. Uma leitura superficial, leviana e isolada em Romanos 9 pode parecer algum favorecimento ao calvinismo. Uma leitura séria, honesta e exegética refuta o próprio calvinismo.
•Conclusão
O apóstolo Paulo conclui o seu pensamento em Romanos 9 da seguinte maneira:
“Que diremos, então? Os gentios, que não buscavam justiça, a obtiveram, uma justiça que vem da fé; mas Israel, que buscava uma lei que trouxesse justiça, não a alcançou. Por que não? Porque não a buscava pela fé, mas como se fosse por obras. Eles tropeçaram na ‘pedra de tropeço’’. Como está escrito: ‘Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha que faz cair; e aquele que nela confia jamais será envergonhado’” (Romanos 9:30-33)
Como vemos, a conclusão de todo o discurso de Paulo não era que Deus predestina um indivíduo ao Céu e outro ao inferno, e sim que a eleição de Israel era irrevogável e que hoje permanece no Israel da promessa, que é a descendência espiritual de Abraão, que inclui os israelitas que creem e os gentios que creem – o que nós chamamos de ekklesia, a Igreja, o Corpo místico de Cristo.
Foi essa a conclusão de Paulo, e foi isso o que ele argumentou ao longo de todo aquele capítulo. Nunca uma predestinação individual à salvação ou perdição esteve em jogo em Romanos 9, pois não era este o ponto de Paulo, não era a isso que ele queria levar. Sempre o que esteve em jogo foi a eleição de Israel à luz da inclusão dos gentios no Novo Pacto – uma eleição corporativa. O calvinista que tenta tirar Romanos 9 do seu contexto para defender uma espécie de predestinação individual à salvação é ou ignorante ou desonesto[22].
Vejam o vídeo:
[1] Neste texto, “amar” e “odiar” é um hebraísmo para “aceitar” e “rejeitar”. Deus aceitou a nação de Israel (a escolheu como propriedade sua nos tempos do Antigo Testamento) e rejeitou a de Edom, assim como os demais gentios, que não foram escolhidos como a nação eleita de Deus. De fato, embora os calvinistas em geral creiam que Deus tem um amor menor pelos não-eleitos, são poucos os que creem que ele os “odeia”, como diz o texto. A maioria reconhece que aqui se trata de um hebraísmo para aceitação ou rejeição. É por isso que a NVI traduz por “rejeitar”, ao invés de “odiar”, mesmo tendo tendências calvinistas.
[2] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 96.
[3] J. Oliver Buswell, A Systematic Theology of the Christian Religion (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1962), vol. 2, p. 149.
[4] John Wesley, “Predestination Calmly Considered,” em The Works of John Wesley, Vol. 10, Letters, Essays, Dialogs and Addresses (Grand Rapids: Zondervan, n.d.), p. 237.
[5] Pr. Thomas Tronco dos Santos. Se o calvinismo está errado, como entender Atos 13:48, além de outros textos? Disponível em: <http://www.internautascristaos.com/videos/debates/calvinismo>
[6] Institutas, 3.21.7.
[7] Sanday e Headlam, Romans, p. 245.
[8] G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics: Divine Election (Grand Rapids: Eerdmans, I960), p. 212.
[9] Bíblia Sheed de Estudo.
[10] Este assunto voltará a ser abordado com mais profundidade no apêndice 1 deste livro.
[11] É lógico que o fato de a misericórdia salvífica de Deus se estender a todas as criaturas não significa que todas as criaturas serão salvas, e sim que todas as criaturas podem ser salvas; isto é, que Deus possibilitou e disponibilizou salvação a todos, tendo misericórdia de cada indivíduo em particular, mas isso não significa que este indivíduo será forçado a crer para ser salvo, pois ele ainda tem que receber e aceitar a graça preveniente, e ainda pode rejeitá-la ou recusá-la.
[12] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 106.
[13] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 107.
[14] B. W. Johnson, The People’s New Testament. Disponível em: <http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/diversos/artigos/15-b-w-johnson/18-b-w-johnson-romanos-9>
[15] Institutas, 3.23.1.
[16] John Murray, Romanos, 1ª edição (São José dos Campos: Editora Fiel, 2003), p. 391.
[17] GEISLER, Norman; HOWE, Thomas. Manual popular de dúvidas, enigmas e ‘contradições’ da Bíblia. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1999.
[18] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[19] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 106.
[20] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[21] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[22] É claro que nem todos os calvinistas são ignorantes ou desonestos em relação a Romanos 9, porque nem todos creem que Paulo estava tratando de predestinação individual à salvação ali. Charles Hodge, por exemplo, disse que “o apóstolo tem em vista a incredulidade de Israel e a longanimidade com que Deus tolera esta incredulidade” (Romans, p. 321).
EXTRAÍDO do Livro: “Calvinismo ou Arminianismo – Quem está com a razão” cedido pela comunidade de Arminianos do Facebook.
NOTA: recomendamos a leitura do livro citado.
Simon diz : “- a minha salvação está nas mãos de Deus. e Ele não falha.”
Ué ainda está nas mãos de Deus ? Ele já deu a salvação para todos os crerem Jo.3:16
Não tem nada guardado com Ele.
Simon diz Simon diz: “- esse “todos” não é para todos, só para os eleitos.”
1 Cor15:22 Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo. Neste v.v. tem dois “todos” então se não é todos, é ninguém? absurdo !
apoiado!
Como Deus escolhe grupos e não pessoas? Grupos não são feitos de pessoas?
Prezado Cleison. Os grupos no caso, são a referência. Todos temos responsabilidades individuais, mesmo estando dentro do grupo de referência. Quando Deus escolheu a nação de Israel para mostrar o Seu poder ao mundo, não quer dizer que todo Israelita seria salvo.
Segundo as Escrituras Sagradas a escolha de Abraão parece não ter sido feita de forma aleatória, ou seja, fruto apenas da soberania de Deus.
Ao contrário, em Gênesis 18:18-19 o Senhor parece descrever o motivo pelo qual escolheu Abraão para essa missão: “…porque eu o tenho conhecido..”
Deus ANTES de ser “soberano” (como querem os calvinistas) Ele é AMOR, e Deus é amigo de Abrãao porque este provou sua fé em Deus pois obedeceu à Sua Palavra! E não escolhido arbitrariamente (como querem os calvinistas).