Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16)
16 – [Porque Deus amou o mundo de tal maneira, etc.] Nosso Senhor, neste verso, mostra a Nicodemos uma outra “coisa celestial.” – Nicodemos provavelmente pensava, como muitos judeus, que os propósitos de misericórdia de Deus estavam inteiramente confinados ao Seu povo escolhido Israel, e que quando o Messias aparecesse, Ele apareceria somente para o benefício especial da nação judaica. Nosso Senhor aqui declara a ele que Deus ama todo o mundo sem qualquer exceção, que o Messias, o Filho unigênito de Deus, é a dádiva do Pai a toda a família de Adão, e que todo aquele, seja judeu ou gentio, que crer nele para salvação, pode ter a vida eterna. – Uma declaração mais surpreendente aos ouvidos de um rígido fariseu é impossível conceber! Um verso mais maravilhoso não deve ser encontrado na Bíblia! Que Deus devesse amar tal mundo perverso como este e não odiá-lo, – que Ele devesse amá-lo de modo a prover salvação – que a fim de prover salvação Ele devesse dar, não um anjo, ou qualquer ser criado, mas tal dádiva inestimável como Seu Filho unigênito, – que esta grande salvação devesse ser livremente oferecida àquele que crer, – tudo, tudo isto é realmente maravilhoso! Isto foi, de fato, uma “coisa celestial.”
As palavras, “Deus amou o mundo,” têm recebido duas interpretações muito diferentes. É proveitoso ao assunto, considerando a sua importância atualmente, declarar as duas concepções completamente.
Alguns pensam, como Hutcheson, Lampe, e Gill, que o “mundo” aqui significa os eleitos de Deus de toda nação, sejam judeus ou gentios, e que o “amor” com que Deus os ama é aquele amor eterno com que os eleitos foram amados antes da criação do mundo, e pelo qual seu chamado, justificação, preservação e salvação final são completamente assegurados. – Esta concepção, embora apoiada por muitos e grandes teólogos, não me parece ser o que nosso Senhor quis dizer. Primeiro, parece-me uma violência à linguagem confinar a palavra “mundo” aos eleitos. “O mundo” é indubitavelmente um nome às vezes dado aos perversos exclusivamente. Mas eu não consigo ver que seja um nome alguma vez dado aos santos. – Em segundo lugar, interpretar a palavra “mundo” dos eleitos apenas é ignorar a distinção que, aos meus olhos, é claramente tirada do texto entre toda a humanidade e aqueles dentre a humanidade que “crêem.” Se o “mundo” significasse somente a porção crente da humanidade, teria sido suficiente dizer, “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que o mundo não pereça.” Mas nosso Senhor não diz assim. Ele diz, “para que todo aquele que nele crê, isto é, para que todo aquele do mundo que crê.” – Finalmente, confinar o amor de Deus aos eleitos, é assumir uma concepção severa e estreita do caráter de Deus, e justamente coloca o Cristianismo aberto às modernas acusações levantadas contra ele como cruel e injusto aos ímpios. Se Deus não tem consideração por ninguém senão pelos seus eleitos, e não se preocupa com ninguém além deles, como Deus julgará o mundo? – Creio no amor eletivo de Deus Pai tão vigorosamente quanto qualquer um. Considero o amor especial com que Deus ama as ovelhas que Ele deu a Cristo desde toda a eternidade como a mais abençoada e confortável verdade, a mais animadora e proveitosa aos crentes. Eu somente estou dizendo que esta não é a verdade deste texto.
A verdadeira concepção das palavras, “Deus amou o mundo,” creio ser esta. O “mundo” significa toda a raça humana, santos e pecadores, sem qualquer exceção. A palavra, em minha opinião, é assim usada em Jo 1.20, 29; 6.33, 51; 8.12; Rm 3.19; 2Co 5.19; 1Jo 2.2; 4.14. O “amor” falado é aquele amor de piedade e compaixão com que Deus considera todas as Suas criaturas, e especialmente em relação à humanidade. É o mesmo sentimento de “amor” que aparece em Sl 145.9; Ez 33.11; Jo 6.32; Tt 3.4; 1Jo 4.10; 2Pe 3.9; 1Tm 2.4. É um amor inquestionavelmente distinto e separado do amor especial com que Deus considera Seus santos. É um amor de piedade e não de aprovação ou complacência. Mas não deixa de ser um amor real. É um amor que absolve Deus da injustiça de julgar o mundo.
Estou bem acostumado com as objeções comumente levantadas contra a teoria que eu acabei de propor. Elas não têm nenhum peso para mim, e eu deixarei de respondê-las. Aqueles que confinam o amor de Deus exclusivamente aos eleitos parece para mim assumir uma concepção estreita e curta do caráter e atributos de Deus. Eles negam a Deus aquele atributo de compaixão com que até um pai humano pode nutrir por um filho dissoluto, e pode oferecer perdão a ele, ainda que sua compaixão seja desprezada e suas ofertas recusadas. Há muito cheguei à conclusão de que homens podem ser mais sistemáticos em suas afirmações do que a Bíblia, e podem ser levados a graves erros pela veneração idólatra de um sistema. A seguinte citação de alguém que, por conveniência, devo chamar de um completo calvinista, estou falando do bispo Davenant, mostrará que a concepção que eu defendo não é nova.
Fonte: Expository Thoughts on John’s Gospel, Vol. 1
Autor: Ryle
Tradução: Paulo Cesar Antunes